As condições tecnológicas
atuais não admitem mais a forma como essas casas são organizadas.
É inacreditável ainda existirem cartórios no Brasil. Mais
inacreditável é que o Congresso esteja prestes a aprovar uma emenda
constitucional para beneficiar 4.965 "donos" de cartório que não
fizeram sequer concurso público, concedendo a eles o direito vitalício de
continuar ganhando muito dinheiro às custas dos demais 204 milhões de
brasileiros. Mudar a Constituição para beneficiar um punhado de gente é feito histórico
e trágico.
Nos Estados Unidos, qualquer pessoa pode virar "dono"
de cartório (chamados de "notários"). É tão fácil quanto tirar
carteira de motorista. Em geral, basta fazer um curso de capacitação e pagar
US$ 50 (R$ 175) para fazer uma prova. Se passar, o candidato torna-se um
notário. Recebe um selo público de autenticação e um livro de registros.
O notário deve obedecer fielmente à lei. Se usar seu selo ou
livro de modo fraudulento, perde a certificação e vai para a cadeia.
O resultado desse sistema é que há notários em toda parte. Já vi
alunos de universidades americanas precisando "reconhecer firma" para
um projeto. Em vez de irem a um cartório, bastou escrever para os colegas
perguntando quem era notário. Três colegas da mesma classe responderam de pronto.
As firmas foram "reconhecidas" ali mesmo, por alguns centavos cada
uma.
Além de mudar o modo de nomeação dos cartórios, é preciso fazer
com abracem a tecnologia. Todos os registros públicos já deveriam estar 100%
digitalizados e abertos na internet. A informação guardada pelos cartórios é
pública e deve poder ser consultada de graça por qualquer pessoa na rede. Quem
precisar pagar por uma "certidão", que pague. Mas a consulta aos
registros cartoriais (seja de títulos, documentos ou imóveis) deve ser gratuita
e aberta online. Pagar para consultar registros que já são públicos é uma
excrescência.
Nos EUA, a publicação na internet de todos os registros de venda
de imóveis revolucionou o mercado. Permitiu o surgimento de sites como
Trulia.com e Zillow.com, onde é possível saber o preço de transação de todos os
imóveis do país, além de verificar seu histórico de compras, vendas e até
locação. A competitividade e liquidez que isso gerou no mercado são imensas.
Dá para ir ainda além. Há países incorporando a tecnologia
chamada "blockchain", derivada da plataforma Bitcoin, para
revolucionar os registros públicos. O "blockchain" é uma espécie de
registro público descentralizado baseado na internet. Diferente dos registros
em papel, ele é impossível de ser fraudado. Na América Latina, Honduras é o
primeiro país a seguir nessa linha. Está migrando seus cartórios de imóveis
para a internet, tornando-os 100% virtuais por meio do "blockchain"
(que é um protocolo aberto).
As condições sociais e tecnológicas de hoje não admitem mais o
modo como os cartórios são organizados no Brasil. Em atenção ao princípio
constitucional da igualdade, é preciso dar fim à nobreza cartorial.
Ronaldo Lemos -
advogado e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro ronaldo@itsrio.org
Fonte: coluna no jornal FSP