A
Agência Pública nasceu com o propósito de realizar um jornalismo confiável,
crítico e independente. Por isso, causa estranheza a reportagem publicada na
segunda-feira (17/2, “Quem grita ‘Não vai ter Copa’?“), com ampla
circulação pelas redes sociais, voltada não exatamente a investigar – porque
isso demandaria muito mais tempo e esforço –, mas a expor o que é, como se
organiza e quem participa do movimento cujo mote é “Se não tiver direitos, não
vai ter Copa”.
O
texto saiu no blog Copa Pública, apresentado como “uma experiência de
jornalismo cidadão que mostra como a população brasileira tem sido afetada
pelos preparativos para a Copa de 2014 – e como está se organizando para não
ficar de fora”. Destoa,entretanto, de várias outras boas reportagens reunidas
no mesmo espaço.
Ausência
de crítica
O
repórter cita acriticamente os objetivos dos participantes, a partir de um
manifesto lançado em dezembro do ano passado que, por si, já suscitaria uma
série de questionamentos. Por exemplo, quando propõe “mostrar nacionalmente e
internacionalmente que o poder popular não quer a Copa”.
Poder
popular? Não seria o caso de indagar não apenas o significado dessa expressão
mas os motivos que levam esse movimento, inserido na onda da contestação da
democracia representativa, a se autoatribuir tal representação?
O
mesmo manifesto menciona a vitória da luta pela revogação do aumento das
passagens de ônibus no ano passado – o que, a princípio, parecia impossível – e
sugere uma comparação com a demanda pela não realização da Copa no Brasil, pois
“o impossível acontece”. Certamente, mas uma coisa é confrontar os interesses
dos empresários do setor de transporte, outra é enfrentar o poder da Fifa e de
toda a monumental estrutura mobilizada para a realização de um megaevento como
esse. Não seria oportuno levantar essas questões na reportagem?
Representatividade
Nas
entrevistas, o repórter reproduz declarações de que o movimento não é
ideológico. É possível aceitar acriticamente tais afirmações? Ao citar as
articulações com grupos de ciberativistas, apenas menciona a hipótese de que o
Anonymous e similares estejam associados a “setores conservadores, até mesmo à
própria polícia”. E pronto: oferece assim, canhestramente, numa frase, o “outro
lado” de uma polêmica antiga e muito difícil de investigar.
Passa
longe do texto qualquer questionamento quanto à eficácia e representatividade
das manifestações, francamente esvaziadas desde julho do ano passado. Pelo
contrário, o repórter fala em “crescimento da articulação”, embora o que se
veja, atualmente, sejam iniciativas de grupos reduzidos que atuam de acordo com
um roteiro previsível, cujo desfecho é a depredação e o confronto com a polícia.
A esse respeito, a única referência é de que o movimento rejeita atos
violentos. Se eles acontecem, é responsabilidade das forças de repressão, ou é
porque as convocações são abertas, via redes sociais, e participa quem quiser.
O suposto desvirtuamento das manifestações não é objeto de preocupação.
O
desejo e a realidade
O
repórter levanta questões apenas em relação às acusações corriqueiras de que
esses protestos servem à direita e à existência de alguma contradição entre os
que estão empenhados em, de fato, “barrar a Copa” e os que consideram esta uma
palavra de ordem voltada à luta pelas reparações a quem foi desalojado ou teve
prejuízos com as transformações do espaço urbano para a realização do evento.
Os
protestos contra a Copa têm a força da denúncia da “cidade de exceção” que se
radicaliza no contexto atual e da crítica ao governo que se submete a
exigências externas incompatíveis com o respeito aos direitos elementares dos
cidadãos, em particular da população pobre. Mas, como ocorre tantas vezes, a
paixão militante leva a amoldar a realidade ao desejo. Daí que os militantes
precisam ser expostos à crítica.
O bom
jornalismo tem esse compromisso, mesmo ou sobretudo quando não mascara de que
lado está: não pode se furtar ao pessimismo da razão. Menos ainda num momento
tão tenso como o de hoje, em que a informação confiável é tão rara e, por isso
mesmo, ainda mais preciosa.
Sylvia Debossan Moretzsohn - jornalista,
professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no
volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora
Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do
senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)
Fonte: site Observatório da Imprensa