Estado e desenvolvimento
Porto Digital e agronegócio têm em comum desenvolvimento de novas
tecnologias e cuidado no desenho da intervenção pública.
Existem exemplos no Brasil de
combinação de políticas públicas, empreendedorismo privado e inovações
tecnológicas que permitem aumentos recorrentes da produtividade, da renda das
famílias e de crescimento econômico.
Esta coluna trata de duas
experiências de sucesso: o Porto Digital do Recife e o agronegócio.
Ambas têm em comum o
desenvolvimento de novas tecnologias e o cuidado técnico no desenho da
intervenção pública.
A forma da intervenção pública
tem detalhes específicos em cada caso, revelando a necessidade da análise
cuidadosa das características do setor e das condições de contorno.
No fim dos anos 1990, Recife
tinha um excelente centro de formação em ciência da computação. Entretanto, a
falta de empregos em tecnologia resultava na emigração de
técnicos bem formados.
Surgiu a proposta de criar um
polo de tecnologia, ou Ecossistema Local de Inovação (ELI), que incentivasse o
empreendedorismo e a inovação em temas de ciência da computação.
Houve uma sugestão de implementar o ELI na Universidade Federal
de Pernambuco, mas foi rapidamente rechaçada.
A UFPE fica longe do centro,
dificultando reter pessoas e atrair empresas, que preferem áreas mais densas,
com vida cultural e oportunidades de encontros inesperados que resultem em
ideias inovadoras.
Decidiu-se implementá-lo no bairro do Recife, região onde a
cidade se iniciara, mas que se tornara uma área decadente com prédios
históricos degradados. O projeto passou a ter um segundo objetivo: recuperar o
centro antigo.
Foi criado o Núcleo de Gestão do Porto Digital (NGPD), conduzido
por um conselho de administração com 19 pessoas representando governo,
universidades, empresas e outras representações da sociedade civil.
As decisões
são colegiadas, e a gestão é profissional.
O município aprovou a Lei do Porto Digital, que reduzia o ISS
das empresas ali instaladas. A concessão dos benefícios é gerida por um comitê
com representantes da prefeitura e do NGPD.
O governo do estado concedeu R$ 30
milhões para restaurar três prédios históricos e financiar por algum tempo o
NGPD.
Mais de duas décadas depois, os resultados impressionam. Prédios
foram restaurados pelo NGPD, que hoje tem nos aluguéis importante fonte de
recursos. A região foi revitalizada com a atração de empresas privadas, que
restauraram ainda mais prédios.
As empresas embarcadas no Porto Digital já somam 365, faturando
R$ 4,75 bilhões por ano e empregando mais de 17 mil pessoas.
Existem sete
instituições de C&T, incluindo o Cesar, órgão de referência na área, que
fatura cerca de R$ 400 milhões por ano.
Das 10 maiores empresas do Porto Digital, 7 foram iniciadas ali.
Recife tem cerca de 700 doutores em ciência da computação, sendo perto de 600
formados na UFPE, nota 7 na Capes, a maior possível. Não há restrição à ida de
profissionais brasileiros para o exterior.
É comum saírem do Brasil e voltarem
anos depois, com mais experiência e conhecimento.
Recentemente, o Porto Digital, em parceria com universidades
privadas, iniciou um programa de bolsas integrais para jovens que se formam em
escolas públicas. São cerca de 600 bolsistas por ano, mais de 60% negros.
Recife tem a maior proporção por habitante de formandos em áreas
que envolvem programação de computador no país, e esse número irá dobrar em três
anos, transformando a demografia da região com pessoas que vieram das
periferias da cidade.
A história do agronegócio tem
resultados semelhantes, mas por meios bem distintos. No fim dos anos 1960, o
Brasil tinha dificuldades na agricultura.
Nossas exportações dependiam
principalmente do café, cujas oscilações de preço no mercado internacional
geravam volatilidade na taxa de câmbio, prejudicando os demais setores,
inclusive a indústria.
O governo apoiou pesquisas para
adaptar as culturas das zonas temperadas, como a soja, para o trópico
brasileiro, além de desenvolver pessoas que pudessem resolver outros problemas,
como a inadequação do solo para a agricultura no Centro-Oeste, por ser
demasiadamente pobre em nutrientes e ácido.
A Embrapa financiou a formação
de cerca de 2.000 técnicos em boas universidades, muitas fora do Brasil.
Além
disso, existiam pesquisadores competentes em universidades públicas, como
Esalq, Viçosa e várias outras, assim como em centros privados e públicos de
pesquisa.
Em paralelo, empreendedores
migravam para o Centro-Oeste, buscando desenvolver a produção agrícola,
experimentando novas abordagens, por vezes fracassando.
Os resultados do agronegócio nos
últimos 50 anos são de tirar o fôlego. A sua produtividade cresceu cerca de
2,9% ao ano.
Em média, os preços dos alimentos pesquisados pela Fipe-USP caíram
em termos reais perto de 2% ao ano, barateando a oferta de alimentos para a população.
Entre 1975 e 2022, a redução real acumulada dos preços passa de 60%.
O aumento de produtividade
permitiu o crescimento e a diversificação das exportações, gerando um círculo
virtuoso.
A expansão da escala de produção induziu novos aumentos recorrentes
de produtividade, inclusive para enfrentar a concorrência de outros países.
O Brasil foi o que mais aumentou
a produtividade total dos fatores na agricultura entre os principais países
produtores e exportadores nas últimas duas décadas.
Tornamo-nos referência
internacional na produção de soja ou em setores como papel e celulose.
A expansão do agronegócio
incentivou o desenvolvimento de insumos e da indústria de equipamentos.
Impressiona o aumento de novas empresas de tecnologia (agtech) em áreas como
agricultura de precisão, automatização e robotização, biotecnologia, entre
outras.
A renda por habitante do
Centro-Oeste, mesmo sem Brasília, cresceu bem mais do que a do Sudeste no
último meio século.
Em meados dos anos 1990, a renda
média por habitante dos moradores do Maranhão era de R$ 335 por mês, apenas 35%
da renda média do Brasil.
A chegada da soja ao sul do estado permitiu que a
renda média dos moradores da região crescesse 235% desde então, muito acima do
que ocorreu na renda média do país e nas outras áreas do MA.
Existem diferenças nas políticas
adotadas no Porto Digital e no agronegócio.
Mas ambos os casos têm em comum
mecanismos sofisticados para incentivar a inovação tecnológica e a formação de
gente para resolver problemas e aumentar a produtividade.
Documentar as experiências
bem-sucedidas pode contribuir para evitar repetir os erros tão frequentes no
desenho da nossa típica política industrial, que distribui subsídios e
proteções de roldão a empresas locais, como se isso fosse suficiente para
garantir o desenvolvimento.
Aparentemente, aprendemos pouco
com nossos muitos fracassos e somos desatentos aos detalhes dos ocasionais
casos de sucesso.
MARCOS LISBOA - economista, ex-presidente do Insper e ex-secretário de
Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005, governo Lula)