Duménil já veio ao
Brasil diversas vezes para palestras em universidades como USP, Unicamp,
Universidade Federal de Santa Catarina, Universidade Federal do Pará e
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Autor de 28 livros escritos em
parceria com pesquisadores, como Michael Löwy e Dominique Lévy, ele fará nos
próximos dias o lançamento de A Crise do Neoliberalismo , título publicado no
Brasil pela Boitempo. Escrito com Lévy, Duménil destaca no livro as políticas econômicas cada vez menos liberais nos Estados
Unidos pós-crise, como o aumento do protecionismo no comércio internacional e
uma política econômica mais intervencionista, voltada a estimular o crescimento
do produto e a ajudar a indústria a voltar a ter atividades dentro do país
(reindustrialização).
O economista descarta que essas mudanças estejam
levando os Estados Unidos, ou mesmo o mundo, para um compromisso mais à
esquerda e fala do avanço de um capitalismo neogerencial .
A seguir, trechos da
entrevista:
Valor: O sr. compara a crise de 2007/08 com outras crises
estruturais, de longo prazo, como as de 1890, 1930 e 1970. Quais são as
evidências de que esta mais recente crise também é uma crise estrutural, de
longa duração?
Gérard Duménil: Você precisa distinguir o que é crise do que é recessão.
Recessão é a contração da atividade e geralmente dura cerca de um ano. As
crises são o que chamo de crise social, que geralmente duram cerca de dez anos.
Como todos sabem, essa crise de 2007-2008 começou como uma crise financeira e então a economia entrou numa
recessão. Parte do mundo, como Europa e Estados Unidos, ainda está vivendo a
crise de 2008. Por exemplo, na Europa o equilíbrio não foi restabelecido e os
Estados Unidos só têm sido capazes de manter um crescimento baixo, e sob fortes
políticas macroeconômicas (cada vez com maior intervencionismo do Estado), de
forma que o governo ainda tem grandes déficits e o Federal Reserve (Fed) está
suportando as atividades da economia. Se essas políticas não estivessem em
andamento, a economia americana teria entrado em nova recessão. E isso não é
fim da história. Embora crises sociais como durem cerca de dez anos, a de 2008
provavelmente vai durar muito mais. Dadas as políticas fortes que estão sendo
usadas para sustentar a economia tanto na Europa quanto nos Estados Unidos (com
maior ou menor sucesso), não é possível dizer que a atual crise acabou. É
difícil ver a saída hoje nos Estados Unidos e Europa. E é importante ressaltar
que essa é uma crise da Europa e dos Estados Unidos e não do mundo todo.
Valor: Se não são dez anos para sair da crise, quantos anos serão?
Duménil: Possivelmente essa crise vai levar mais do que dez anos. Mas
não temos ideia de quanto tempo exatamente levará, porque o problema de sair de
uma crise dessas é que seria necessário mudar a forma básica de funcionamento
da economia, alterar a forma de gerenciamento das
grandes empresas, mudar mecanismos de regulação do sistema financeiro e as
regras da globalização. Esse tipo de política não existe hoje no mundo. Nos
Estados Unidos, eles suportam a economia com políticas do Federal Reserve e
também há uma política industrial. Em termos gerais, a situação nos Estados
Unidos é melhor do que na Europa, e quando falamos de Europa é preciso
distinguir entre Alemanha, França, Itália e Espanha, que não vivem a mesma
situação. Mas o que está claro é que na Europa e nos Estados Unidos ano após
ano há cada vez menos investimentos. E esse tipo de situação não pode ser
mantido por muito mais tempo. Mudanças são necessárias, mas dependem de
políticas e de luta social. E é por conta desses fatores que é impossível
prever quanto tempo a crise durará. Ninguém sabe. Alguns acham que a economia
pode fazer previsões. Mas estou destacando que depende de circunstâncias
políticas.
Valor: Assim como outros autores, sua interpretação é de que a crise
se iniciou na esfera financeira e se tornou uma crise da dívida pública. Talvez
por isso seja uma crise de tão longa duração…
Duménil: Os governos estão tendo que fazer isso [gastos] para manter a
atividade econômica. Nos Estados Unidos, por exemplo, a dívida do governo está
crescendo de forma muito rápida. Mas isso não pode ser considerada uma crise
aguda, porque o resto do mundo ainda compra títulos emitidos pelo Tesouro
americano, de forma que grande parte do déficit é financiada pelo resto do
mundo, especialmente pela China. Mas essa dívida não pode seguir crescendo para
sempre. Em algum momento, eles terão que alterar a política econômica. Na
Europa, a política econômica tem sido completamente diferente. Eles estão tentando
reduzir os gastos do governo, tentando diminuir o tamanho da dívida. A Europa
tenta a austeridade, gastando menos. Mas, como se sabe, a Europa está em
recessão constante. E mesmo com austeridade não está conseguindo cortar os
gastos. Eles não são capazes de cortar muito nos gastos, porque vão provocar
nova contração da atividade. Isso é onde estamos hoje. Para sair dessa
situação, é necessária uma reforma profunda, que significa conglomerados
empresariais completamente diferentes, menos comprometidos com o mercado
financeiro, menos preocupados em gerar dividendos e com a alta das ações.
Na Europa e nos Estados
Unidos há cada vez menos investimentos. E essa situação não pode ser mantida
Valor: O sr. afirma que essa crise estaria levando a uma transição. Que
transição seria essa?
Duménil: Nós agora estamos numa ordem social, que é o neoliberalismo. E
ele tem uma série de características, como corporações geridas sob o interesse
dos donos das grandes empresas e gestores de alto nível hierárquico, e uma situação
de globalização com total liberdade de fluxo de comércio, e de fluxo de
capitais. A transição seria uma mudança fora dessa ordem. Seria mudar essas
especificações.
Valor: O que de fato está ocorrendo nessa direção?
Duménil: Você precisa distinguir entre aquilo que está acontecendo e o
que eu gostaria que estivesse ocorrendo. Europa e Estados Unidos vivem
situações diferentes. Nos Estados Unidos, a economia, na sua forma básica,
ainda funciona da mesma maneira, mas o Estado agora atua com fortes políticas
para tentar dar suporte à economia. Não há só uma política industrial para
ajudar a retomada da atividade, mas também políticas macroeconômicas, como a
manutenção do déficit do balanço, e uma política monetária que mantém a taxa de
juros em um nível muito baixo. Já na Europa, a situação é
similar, mas diferente. Similar porque a economia ainda está funcionando da
mesma maneira, formas parecidas de gerenciamento das grandes corporações
ocorrem, mas praticamente sem política industrial para setores específicos, e
não há na Europa uma atuação forte do Estado na economia, por uma opção
política. Então, não há sinais na Europa que possam ser comparados às ações do
governo e do Fed nos Estados Unidos. Nos Estados Unidos, não estamos fora do
neoliberalismo, porque a economia funciona de acordo com o interesse de uma
minoria, mas é importante observar que a economia funciona de uma forma cada
vez menos liberal por causa da ação forte do Estado. Na Europa, isso não está
se movendo nessa direção. Então, há um neoliberalismo na Europa, que não é
mesmo neoliberalismo que existe hoje nos Estados Unidos.
Valor: Qual é o papel da América do Sul, e do Brasil especificamente,
nessa transição?
Duménil: Hoje, o crescimento do mundo ocorre nos países que eram
chamados de periféricos, como China, Sudeste Asiático, Brasil, América Latina.
Há até países da África crescendo. Claro, outros estão em situação
completamente diferente. Mas o fato é que, em geral, o crescimento atualmente
está fora dos velhos centros. Na Europa e nos Estados Unidos, praticamente não
está ocorrendo. Mas o ponto central é que tipo de sociedade esses países que
estão crescendo estão construindo agora. O Brasil, por exemplo, está cada vez
mais construindo uma economia neoliberal ou não? Alguns tipos de políticas
desenvolvidas por Lula, por exemplo, aprimoraram a proteção social, mas também
no Brasil o setor financeiro é muito poderoso, concentrando grandes lucros.
Além disso, está se ampliando numa velocidade incrível o número de bilionários
no país. Então, é difícil de dizer. Mas há vários aspectos neoliberais. A mesma
coisa acontece com a China. Ela está desenvolvendo agora uma grande classe
capitalista, com bilionários, e o Estado ainda está controlando muito a
economia. Então, a China estaria ampliando o neoliberalismo ou não? Ao mesmo
tempo, também estamos vendo mudanças no comércio dos países considerados
periferia, como, por exemplo, entre Brasil e China, de forma que esse fluxo não
depende dos centros velhos. A situação nesses países dependerá dos desdobramentos
das forças políticas e das lutas sociais. Se continuarem aprofundando o
neoliberalismo, terão o mesmo problema que hoje há nos países do centro.
Valor: Essas mudanças, principalmente nos Estados Unidos, significam o
fim da era do neoliberalismo?
Duménil: O que posso dizer agora é que as coisas estão mudando, em
particular nos Estados Unidos. Mas você pode definir o neoliberalismo em dois
aspectos. Um é a economia que funciona em prol dos interesses de uma classe
privilegiada. Segundo, você pode defini-lo pelos métodos, com quais políticas
eles obtêm isso. O que vemos é que nos Estados Unidos, temos o neoliberalismo
na sua essência, em que a economia está funcionando de acordo com os anseios
das classes de renda mais altas, mas os métodos – parte deles ao menos – para
isso estão mudando, em especial, a gestão da política macroeconômica, com o
governo dando suporte à indústria no seu território, e o Federal Reserve
suportando o déficit do governo porque ele é necessário.
Valor: Por que, na sua avaliação, a hegemonia mundial dos Estados
Unidos está em declínio?
Duménil: Eles estão perdendo gradativamente a hegemonia pelo menos do
ponto de vista econômico, mas não ainda do ponto de vista militar. Isso não
significa que não mudarão suas políticas para reverter esse processo, porque
eles têm ficado cada vez mais conscientes da perda de sua hegemonia. Se você
pesquisar o que está sendo produzido na National Defense University, que é uma
universidade militar americana, você vai ver que eles dizem: Nós precisamos
parar, nós precisamos da indústria em território americano porque vamos perder
nossa hegemonia . Há agora um compromisso do governo americano de restaurar a
indústria no território dos Estados Unidos. Eles estão fazendo uma
reindustrialização. O gás de xisto, recém-descoberto, está sendo desenvolvido
em uma velocidade incrível. Na França, por exemplo, isso é proibido. E o preço
da energia nos Estados Unidos hoje é mais barato do que na Europa. E, além
disso, os Estados Unidos estão cada vez mais desenvolvendo políticas
protecionistas.
Há agora um compromisso
do governo americano de restaurar a indústria no território dos Estados Unidos
Valor: Como outros autores, o sr. acredita que há uma mudança para um
mundo multipolar?
Duménil: Provavelmente, porque se a hegemonia dos Estados Unidos está
diminuindo, e o poder da China está crescendo, com ampliação dos seus gastos
militares, isso quer dizer que outros polos de poderes serão comparativamente
mais fortes. O que sabemos hoje é que há mudanças. A extensão dessas mudanças
não sabemos, pois há fatores políticos, impossíveis de prever.
Valor: O sr. acredita que as transformações pós-crise levarão a uma
nova ordem denominada de capitalismo neogerencial . O que isso significa?
Duménil: Isso significa que haverá maior equilíbrio entre o poder da
classe capitalista e o poder do gestor público e dos gerentes privados de alto
nível hierárquico, em benefício do poder desses últimos. Isso já está
ocorrendo. O que vemos é que certamente o interesse de algumas classes será
preservado, provavelmente com diminuição dos benefícios da classe capitalista,
porque é impossível continuar como hoje está. Isso quer dizer mais intervenção
do governo, alguma redefinição do gerenciamento das corporações, mas não
significa novo compromisso social com a esquerda. Depois da Grande Depressão e
da Segunda Guerra Mundial, um novo compromisso social foi estabelecido com a
esquerda. O gerenciamento das corporações tinha como meta o crescimento e
mudanças técnicas. Os lucros eram conservados com as corporações, em vez de
massivamente se tornarem pagamento de dividendos. Os fundos mantidos pelas
corporações eram usados para investimento no território, em vez de serem gastos
pelas corporações para a compra de suas próprias ações no mercado, para aumentar
os seus indicadores. E muito menos investimento era feito fora do seu
território. As primeiras décadas do pós-guerra foram um período de progresso
social, com aumento do poder de compra dos salários, crescimento dos gastos
sociais, progresso na saúde e na educação. Hoje, tanto na Europa como nos
Estados Unidos, as tendências sociais apontam para uma direção oposta. Isso
pode ser notado pelas permanentes pressões sobre o custo do trabalho em nome da
melhora da competitividade. As atuais tendências que se manifestam vinculam-se
a uma tentativa de preservar os privilégios das classes mais altas,
estabilizando e estimulando a economia.
Valor: A crise pode estar impulsionando novos modelos de
desenvolvimento econômico nacional?
Duménil: Hoje, você observa que as empresas americanas investem mais no
resto do mundo do que nos Estados Unidos propriamente. O capital está saindo
dos Estados Unidos porque as corporações estão cada vez menos investindo no seu
próprio país. E mesmo que os Estados Unidos recebam investimentos de outros
países, isso não compensa o que os americanos perdem de investimentos de suas
próprias empresas. Isso é completamente impossível de se manter. Se mantiverem,
os Estados Unidos perdem completamente sua hegemonia numa velocidade incrível.
Então, o problema é que de alguma forma precisam limitar a globalização. Já
estão restringindo fortemente o comércio exterior, com ampliação do
protecionismo. Vários estudos mostram isso. Quantos anos precisam para reverter
esse quadro? Cinco, dez anos? Não sabemos. E é importante atentar para o fato
de que há uma contradição aí. Ao mesmo tempo em que precisam limitar essa
globalização, um dos grandes poderes dos Estados Unidos são as corporações
transnacionais americanas. Então, eles precisam incrementar sua indústria
local, mas, ao fazerem isso, simultaneamente acabam restringindo o poder das
transnacionais americanas.
Fonte: Valor Econômico