Opressor é forte por ter cúmplices entre oprimidos
Conflitos
conjugais e brigas familiares estão provocando explosão de separações e
divórcios no país.
“Todo dia ela faz tudo sempre igual”, cantou Chico
Buarque.
A rotina massacrante da mulher brasileira lembra o mito de Sísifo,
personagem da mitologia grega que foi condenado a repetir a mesma tarefa de
empurrar uma pedra até o topo de uma montanha.
Toda vez que estava quase
alcançando o topo, a pedra rolava montanha abaixo, invalidando o sacrifício.
Como no mito, a brasileira está condenada a recomeçar do zero todos os dias,
após cumprir infinitas tarefas domésticas.
Com a pandemia, tudo piorou. Exausta,
sobrecarregada e estressada, a brasileira é a maior consumidora, no mundo, de
antidepressivos, ansiolíticos e remédios para dormir.
Aumentou assustadoramente a violência física,
verbal e psicológica dentro das nossas casas. Conflitos familiares, que antes
eram ignorados, explodiram.
“A minha casa se tornou o ringue de uma violenta
guerra dos sexos”, confessou uma professora de 53 anos. “Minha filha terminou
com o namorado porque ele é um fanático negacionista.
Só que meu marido e meu
filho também são. Quando ela bate panela e grita: ‘Fora genocida! Basta!’ em
uma janela, eles berram ‘mito’ na outra.
Eles ficam putos, xingam a menina de
feminista histérica, pois ela não admite agressão, ofensa e brincadeirinha
sexista. Ela reage gritando: ‘machistas, psicopatas, fascistas’. Tem só 18
anos, mas já é uma guerreira corajosa.”
O filho, ao
contrário, é um “parasita egoísta e irresponsável”. “Meu filho tem 33 anos, não
trabalha nem estuda.
Não tenho coragem de dizer para ele deixar de ser um
inútil e procurar um trabalho. Todas as noites ele vai a bares e baladas, sem
máscara. Acha que não é justo perder a juventude por causa de uma doença de
velhos.
Os amigos
estão tendo vida normal, por que só ele ficaria preso em casa?
Só se preocupa
com o próprio umbigo. Ele me xinga de velha louca e paranoica quando mostro que
os jovens estão morrendo.
Mas como uma mãe pode se separar do filho?.” As
brigas com o marido, que já eram frequentes, pioraram com a pandemia.
“Meu marido dá gargalhadas sádicas quando vomita barbaridades:
‘Vai ser bom para a Previdência se os velhos morrerem logo’; ‘Máscara é coisa
de boiola e de cagão’.
Só reclama da vida, se irrita com tudo, briga por
qualquer besteira. Não consigo nem ir ao banheiro que ele já berra pedindo
alguma bobagem. E ainda diz que não faço nada além da minha obrigação de esposa
e mãe.”
A pandemia escancarou “a verdade nua e crua” que ela nunca teve
coragem de admitir: “O opressor mais perigoso, perverso e tóxico mora dentro de
casa e até mesmo dentro de nós”.
“Minha filha me apelidou de ‘Não sou feliz, mas tenho marido!’.
Ela acha que sou a principal responsável pela minha infelicidade, já que não me
divorcio por medo da solidão e da opinião dos outros.
Não considera justo
culpar meu marido pelo inferno que é a nossa família, pois não sou uma vítima
inocente e indefesa.
Para ela, meu maior erro foi ter desistido dos meus
projetos profissionais e da independência financeira pensando que um marido
iria me garantir estabilidade, segurança e a solução de todos os problemas.
Me acusa de ser cúmplice do autoritarismo e machismo, em função
do meu silêncio e omissão. Diz que não tenho coragem de ser uma mulher livre,
pois prefiro viver em uma prisão domiciliar. Ela tem toda razão.”
Simone de Beauvoir afirmou que “o opressor não seria tão forte
se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”.
A luta pela libertação
não é só das mulheres, mas dos homens, já que senhores e escravos são
prisioneiros de relações tóxicas e violentas.
Infelizmente, muitos acham “mais
confortável suportar uma escravidão cega do que trabalhar para se libertar”.
Mirian Goldenberg - antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio, é
autora de "A Bela Velhice".