Os livros podem voltar a ser lidos agora que estão
livres de falhas morais
Leitores
de sensibilidade nos salvam das armadilhas dos livros, mas são escolhidos com o
critério de não saber ler.
Esta semana calhou a Agatha Christie a distinção de ter os seus livros corrigidos pelos chamados leitores
de sensibilidade.
Ela já não está aqui para desfrutar do privilégio,
mas nós devemos regozijar-nos.
É um alívio podermos ler agora os livros expurgados
de palavras feias e ideias degeneradas.
E só podemos fazê-lo devido ao esforço
abnegado dos leitores de sensibilidade, que se sacrificaram por nós, lendo os
livros perigosos e desarmadilhando-os, para a nossa segurança.
No entanto, e para que a profissão seja menos
arriscada, os leitores de sensibilidade são escolhidos com o seguinte critério:
não devem saber ler nem devem ter sensibilidade.
De outro modo, a versão original dos livros poderia
ter neles o mesmo efeito fatal que teria nos leitores comuns.
Se soubessem ler, perceberiam a diferença entre uma
personagem e o autor, e se tivessem sensibilidade poderiam ser sensíveis ao
contexto histórico em que um texto foi escrito.
Assim é mais seguro.
E foi com essa pobreza de
espírito (que além da profissão de leitores de sensibilidade também lhes
garante o Reino dos Céus) que fizeram as seguintes emendas: no livro "Mistério no Caribe", um
empregado indiano de hotel sorri para Miss Marple, e ela acha que ele tem
"lindos dentes brancos".
Na nova versão, ela não acha nada. No mesmo livro,
uma personagem feminina tinha "um torso de mármore negro que um escultor
teria apreciado". Na nova versão já não tem.
Ainda em "Mistério no Caribe", um homem
não consegue ver uma mulher negra, junto a uns arbustos, à noite, quando vai a
caminho do seu quarto de hotel.
Na nova versão, quem não vê nada somos nós, porque
essa passagem foi removida.
No livro "Morte no Nilo", Poirot
observava os barqueiros núbios. Na nova versão, observa apenas barqueiros.
Devo confessar que, um dia, às margens do Nilo,
visitei uma aldeia núbia. Vi bastantes núbios, alguns dos quais suponho que
seriam barqueiros.
É óbvio que estou arrependido e peço desculpa. Estas e outras
alterações contribuem, sem dúvida nenhuma, para purgar piedosamente os livros,
e constituem uma excelente alternativa ao antigo método purificador, que era
queimá-los.
Devidamente livres de falhas morais, os livros podem, enfim,
continuar a ser lidos.
Estas são alterações devotas. São correções beatas. São erratas
de sacristia.
RICARDO
ARAÚJO PEREIRA - humorista,
membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.