Para
ter filhos não basta concebê-los e pari-los: há que se ter o direito a tê-los
Cada vez que o casal real põe um filho no mundo, me dá
uma constrangedora alegria. Nossa querida Kate, a quem desconhecemos
completamente —salvo se você acreditar que fotos são suficientes para
conhecer alguém— sai da maternidade a cada filho mais rápido, mais magra,
mais bem vestida e mais feliz. Carregando nos braços “sua majestade, o
bebê”, ao lado de seu príncipe, segue para seu palácio, no qual imaginamos
que a vida seja uma sucessão de fotos perfeitamente posadas. E, por
favor, não me façam uma série desbancando minha fantasia, porque realmente
quero acreditar que seja um casal adorável e não a baixaria que a
série “The Crown” (Netflix) teve o mau gosto de revelar sobre os sogros reais.
O príncipe William e a duquesa de Cambridge, Kate, com o
terceiro filhos, Louis Arthur Charles
William e Kate podem ser pai e mãe por, pelo menos, duas
razões: porque têm essa competência e, não menos importante, porque têm esse
direito. Afinal, para se ter filhos não basta conceber, gestar e parir
—coisa que a maioria da população adulta consegue fazer até sem desejar,
haja vista o número alarmante de abortos sob condições precárias. Há que se ter
também o direito a tê-los.
Dependendo da condição social da mulher e do homem,
paternidade e maternidade precisam do aval do estado para serem vividas e, caso
não recebam esse aval, a pena é a perda sumária da guarda dos filhos.
Um estudo recém-publicado pela Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama da
Faculdade de Direito da USP denominado “Primeira Infância e Maternidade nas
Ruas da Cidade de São Paulo” nos aproxima ainda mais da diferença entre os dois
sentidos da palavra “poder” em português: capacidade e possibilidade.
O estudo mostra a confusão grotesca entre a competência
que uma mãe tem de atender às necessidades do filho e as condições sociais
necessárias para fazê-lo. Em grande parte das situações, quando o estado
decide que uma mãe é incompetente para exercer sua função e assina a perda
da guarda, o faz sem assumir que assina também sua própria incompetência
de oferecer-lhe condições para o exercício dessa maternidade.
Digo mulheres, porque as crianças em situação de
vulnerabilidade estão sob os encargos exclusivos delas. Um dos trechos da
conclusão do estudo não poderia ser mais claro: “Em muitos dos casos narrados
(de destituição do poder família e perda de guarda) não houve a prática de
nenhum tipo de violência ou negligência para com a criança mas, sim, tão
somente, seu nascimento no contexto de precariedade que é o que vive sua mãe.”
É óbvio que existem situações de maus tratos nessa
população, mas é importante lembrar que violência e negligência parental
ocorrem em todos os extratos sociais, ainda que veladas pela privacidade,
que só quem não está na rua pode usufruir.
Por vezes, são mães diante do dilema salomônico de
ter de escolher entre a integridade física e moral do filho em situação
de rua, de um lado, e o desesperado desejo de não se separar dele,
de outro. Numa excelente colocação, a psicanalista Christine Davoudian
—organizadora do livro de “Mères et Bébés Sans-Papiers” (mães e bebês sem
documentos), que atende pais e mães migrantes sem documentos na França— se
pergunta por que mulheres pobres não têm acesso a técnicas de
fertilização assistida. Pelo contrário, as mulheres nessas condições têm
sido vítimas históricas de esterilização sem consentimento, revelando quem tem
direito a ser mãe em nossa sociedade.
Vida
longa ao príncipe Louis Arthur Charles e seus adoráveis pais! Oxalá a realeza
de alguns no Brasil —fruto do desvio de dinheiro público— possa ser reconhecida
como uma das causas da suposta incompetência dessas mães e pais. As outras
sendo o capitalismo, a misoginia e o racismo, é claro.
Vera
Iaconelli - Psicanalista, fala sobre
relações entre pais e filhos, mudanças de costumes e novas famílias do século
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Fonte:
coluna jornal FSP