A representação cerebral do nosso
corpo é construída a cada instante
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Vim recentemente ao Brasil no mesmo avião que
trazia a seleção paraolímpica americana. Era mais de uma centena de atletas,
todos impressionantes por sua disposição e vitalidade, certamente eletrizados
com a perspectiva de participar da competição de mais alto nível com que um
atleta pode sonhar.
Poucos deles estavam em cadeira de rodas. Todos os
atletas a quem faltavam uma ou duas pernas andavam de pé normalmente, tão
hábeis e estáveis quanto eu ou ainda mais. Parte do feito se deve à qualidade
das novas próteses, leves e bem articuladas, ou então de metal moldado na forma
de um C que deixa de lado a anatomia para suprir as funções de amortecimento e
impulsão que os ligamentos dos pés proporcionam.
Fiquei ali olhando-os embarcar, esperando minha
vez, maravilhada com o desfile de ciência e tecnologia. Que bacana existir
pesquisa básica sobre metais, polímeros e outros materiais que a engenharia
pode então aplicar na prática –e também pesquisa básica sobre como o cérebro
representa o corpo, que permite entender o feito desses jovens como
consequência bem-vinda de uma propriedade pouco conhecida do cérebro, e não um
milagre ou exceção.
Uns diriam que a capacidade do cérebro incorporar
membros prostéticos está em sua plasticidade, mas eu discordo. Sim, o cérebro é
plástico, capaz de se reorganizar de acordo com o uso que faz dele mesmo. Mas
neste caso, a base é o oposto: o cérebro mantem a representação dos membros
perdidos –a ponto de a grande maioria dos amputados continuar sentindo a parte
do corpo que não existe mais.
São sensações reais, não "psicológicas"
ou imaginadas, originadas no córtex cerebral que ainda representa o membro
perdido, agora estimulado pelas representações das partes vizinhas, estas
mantidas.
Com a prótese, contudo, o cérebro, que novamente
enxerga e movimenta a parte do corpo perdida, volta a construir uma imagem
multissensorial sua, encaixada no mesmo mapa corporal anterior. Basta haver
movimento coincidindo com as ordens e percepções do cérebro e o que se move é
literalmente incorporado: a prótese faz parte do corpo.
O que pouca gente sabe é que a representação
cerebral do nosso corpo é construída a cada instante, de acordo com seus
movimentos e a informação sensorial que chega de volta. Para o cérebro, nosso
corpo não é; ele está, conforme ele se move
Suzana Herculano-Houzel - neurocientista, professora da
UFRJ, autora do livro "Pílulas de Neurociência para uma Vida Melhor"
(ed. Sextante)
Fonte: www.suzanaherculanohouzel.com