Corri à
biblioteca, onde Machado de Assis permanece sempre à espreita, pronto para contar
estórias. Pedi-lhe alguma sobre o trabalho de criação, fosse artística ou
literária. Abriu-se o livro, na página inicial de O anel de Polícrates. Lá ia o
Xavier, sujeito podre de rico - quer dizer, personagem que esbanjava ideias.
Era uma vertigem encontrá-lo para dous dedos de prosa na Rua do Ouvidor, pois
discorria logo sobre cousas possíveis e impossíveis, o livro que escreveria, o
poema que trazia na cachola, um discurso político, a viagem à lua num balão que
inventara, filosofia, teatro... Uma cascata de ideias e imagens, verdadeiro
"saco de espantos".
Todavia, era impaciente,
padecia da falta de "gestação indispensável à obra escrita". Varria o mundo com os
olhos, clicava em todos os links, por assim dizer, mas não se fixava em
qualquer um deles. Mais adiante veio mestre Romão, em Cantiga de Esponsais. Bom
músico, ótimo sujeito e amado pelas beatas, porém vinha com o passo lerdo e os
olhos no chão. Transformava-se, é verdade, ao reger a orquestra durante a
missa. Uma energia derramava-se então por todo o seu corpo, ficava iluminado,
"era outro". Murchava pouco depois do encantamento, a roer o fato de
que não conseguia compor ele próprio as músicas que regia. Não era por falta de
esforço. Sentava longas horas diante do cravo, a meditar com a vista no chão, a
buscar no céu alguma inspiração. Mas ela não vinha, morreu esperando.
Xavier era a imaginação
sem pernas; mestre Romão, as pernas que não logravam o caminho das musas. Há em
Machado estórias para todos os gostos. Por isso logo aparece O Cônego ou a
Metafísica do Estilo. Aposto que os leitores não sabem que as palavras têm
sexo. Ademais, sexo sem preconceito. Vejam só, por exemplo, a busca constante do substantivo pelo adjetivo
que lhe convém, sonho de casamento perfeito. O cônego Matias tinha de fazer o
sermão numa festa próxima. Vossa Reverendíssima levava fama de destro nessas
cousas, empenhava-se, fazia bonito.
Começou a escrever, tudo
ia bem, até que o tal substantivo estacou, à espera do adjetivo seu parceiro. O
cônego sofreu, mas insistiu, oferecia um adjetivo, riscava, trazia outro,
deletava de novo, como se diz hoje em dia. Durou bastante o impasse. O cônego
foi à janela, viu as árvores e o sol. O lado direito do cérebro continuou a
negociar sempre com o esquerdo, até que o bom pastor voltou à mesa de trabalho.
Estremeceu, o rosto dele se iluminou e a pena, "cheia de comoção e
respeito, completa o substantivo com o adjetivo".
Dores e prazeres da
criação. Não há nada definitivo neste mundo, nem estou aqui para ditar regras.
Ao compilar tudo, pensando bem nas estórias que Machado contou, opino que
talvez não seja mesmo uma boa ideia bulir com elas "para facilitar a
leitura". Neste tempo nosso, difícil de entender como tantos outros, cheio
de cliques, texting e links como nenhum outro, há quem sabe a necessidade de
reservar algo para a leitura lenta, a fazer devagarinho, quase parando. Se
parece cedo para ler Machado de Assis, não custa esperar mais um pouco. A vida
pode ser longa quando se é jovem, ou mesmo adulto, pois as pílulas andam
alongando muito a existência.
Se um romance machadiano
ainda pode ser difícil, que se leia um conto ou uma crônica. Há tantos textos
curtos dele, tão belos, tão cheios de ideias e de imaginação viva. Não se
aprende a ler Machado de Assis lendo menos do que Machado de Assis. Nada
prepara alguém para tal experiência, a não ser a professora ou outro mentor
atento e apaixonado, capaz de compartilhar com os pupilos a incerteza dos
sentidos e a música do estilo que constituem esses textos. Não se precisa
tampouco de 300 mil exemplares. Pelas barbas do profeta! Trezentos mil! Se há
uma biblioteca por perto, que sorte. Se não há biblioteca, há de haver um
computador plugado na internet. Digite, por exemplo, www.machadodeassis.net. Os textos do
bruxo estarão lá, romances e contos, com notas a decifrar alusões, a fornecer
explicações úteis. Há outras opções, mas não as dou para não cansar a vista.
Além disso, achei um conto, chamado Um Homem Célebre. Com licença, pois preciso
lê-lo bem devagar.
Sidney Chalhoub – historiador,
professor titular da Unicamp e autos, entre outros livros: Machado de Assis
Historiador (Companhia das Letras)
Fonte: site controversia