(R)evoluções científicas e o
que elas não são
Desconfie de quem tenta vender revoluções científicas que desdizem tudo
o que veio antes.
Tenho percebido uma saudável
tendência no público que acompanha temas científicos em reportagens, podcasts e
vídeos (vocês que me desculpem, mas eu me recuso a usar a expressão
"consome conteúdo", um negócio horroroso).
As pessoas andam perguntando
com cada vez mais frequência como se faz para não comprar gato por lebre.
Ou
seja, como identificar fontes confiáveis de informação; como distinguir avanços
científicos de verdade da pseudociência bem-penteada e cheirosinha.
A resposta curta é "fórmula
pronta não existe".
Para o público leigo —e para jornalistas de ciência como eu—, aprender a separar o
joio do trigo exige tempo e certo engenho e arte.
No entanto, isso não
significa que não existam alguns atalhos úteis para desenvolver o que chamo
carinhosamente de "detector de cocô" (metafórico, é claro).
Gostaria de aproveitar esta
coluna para abordar um desses atalhos.
É muito comum que picaretas se
aproveitem de uma das características meritórias da ciência —a sua
provisoriedade, que faz com que teorias continuem sendo testadas, revisadas e,
às vezes descartadas— para lançar dúvidas sobre absolutamente tudo.
"Nossa, mas por acaso você
acredita em verdades imutáveis?
O pensamento científico exige que questionemos
sempre e questionemos tudo", dizem esses lobos trajados de cordeiros.
Ideias "fora da caixa", segundo esse pessoal, merecem ser ouvidas
porque o que soa absurdo hoje pode acabar se revelando um insight importante
que, por inércia ou inveja, cientistas acomodados acabam desprezando. Será
mesmo?
Permita-me citar o saudoso
astrofísico Carl Sagan (1934-1996): "As pessoas
riram de Colombo. As pessoas riram dos irmãos Wright.
Mas elas também riram do
Bozo". Ideia diferente não é sinônimo de ideia respeitável.
E tem mais:
repare que Sagan está citando figuras (como Colombo e os irmãos Wright, e,
claro, o nosso Santos Dumont) que, por circunstâncias
históricas, foram capazes de operar reviravoltas de grande escala em certas
áreas do conhecimento.
Antes de Colombo, ninguém do
Velho Mundo cogitava seriamente a existência de um outro continente deste lado
do Atlântico (ainda que Colombo jurasse de pé junto que tinha chegado à
Ásia...).
Ninguém tinha voado com aparelhos mais pesados do que o ar antes
dos Wright.
Mas a construção do conhecimento
científico, quando bem-feita, é um processo essencialmente cumulativo.
O que
significa que os achados sólidos dos experimentos e das teorias mais antigas
limitam o quanto as descobertas novas são capazes de alterar a nossa concepção
cientificamente informada do mundo.
Assim, em muitos aspectos, até as maiores
revisões do conhecimento envolvem detalhes, margens de erro, e não jogam por
terra o que se sabia antes.
Um exemplo muito citado de
revolução científica que ajuda a ilustrar isso é o da formulação da teoria da
relatividade e da mecânica quântica no começo do século passado.
Em termos
conceituais, é verdade elas mudam totalmente o que achávamos que sabíamos com
base na física newtoniana que vinha sendo refinada desde o século 17.
Mas, para uma grande variedade
de contextos —inclusive para a tarefa de mandar astronautas para a Lua— a
física multicentenária de Newton resolve todos os nossos problemas.
Apelamos
para a relatividade para construir aparelhos de GPS e para a mecânica quântica
para entender o comportamento contraintuitivo de partículas elementares, mas
nenhuma das duas desdiz a física "antiga" do nosso cotidiano.
Aliás, tem um outro ramo de
pesquisa ao qual podemos aplicar essa mesma lógica.
A compreensão de que gases
como o dióxido de carbono são capazes de esquentar a atmosfera é baseada em
física antiga e seguríssima, resolvida no século 19.
Ainda precisamos entender
inúmeros detalhes sobre o sistema climático.
Mas o fato de que entupir a
atmosfera com gás carbônico é receita para quentura potencialmente insuportável é
tão difícil de questionar quanto a aceleração que acontece quando você joga uma
bolinha do décimo andar. Desconfiem de qualquer sabichão que diga algo
diferente disso.
REINALDO JOSÉ LOPES - jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de
"1499: O Brasil Antes de Cabral".