Anos atrás, coorganizei uma conferência em Chicago para
matemáticos de todo o mundo. Entre eles, um estudante iraniano do Impa cujo
pedido de visto para os Estados Unidos foi sumariamente negado, apesar de ter
toda a documentação, inclusive uma carta abonadora da direção do Instituto de
Matemática Pura e Aplicada.
Chateado, informei a minha colega em Chicago sobre o
ocorrido e então aconteceu algo que eu não previ: ela enviou um e-mail ao
deputado do seu distrito, que contatou o consulado no Rio de Janeiro. Pouco
depois, o estudante recebeu um telefonema pedindo para voltar ao local e, em
menos de 48h, a questão do visto estava resolvida.
O episódio me tornou fã do sistema eleitoral
norte-americano, em que o território está dividido em distritos, e cada um
elege um deputado. Dessa forma o eleitor sabe quem é o seu representante no
parlamento e em quem votar na próxima eleição, ou não, dependendo do trabalho
realizado.
Mas o sistema distrital também tem dificuldades. Para
garantir isonomia, a lei exige que todos os distritos contenham praticamente o
mesmo número de eleitores. Para isso, os distritos precisam ser redesenhados a
cada dez anos, a partir dos dados do censo. O problema é que a tarefa fica a
cargo dos estados, onde o partido dominante costuma aproveitar para tirar vantagem.
Eis um exemplo simples de como isso pode ser feito.
Suponha que um dado estado tenha três deputados, para 30
mil eleitores. Com base nas eleições anteriores, é sabido que 16.500 são
republicanos e 13.500 são democratas, e também como uns e outros se distribuem
no estado. Os democratas são mais de um terço, seria justo que tivessem pelo
menos um deputado. Mas o partido majoritário desenha os distritos de tal modo
que cada um deles contenha 5.500 republicanos e 4.500 democratas. Dessa forma,
todos os deputados são republicanos!
Essa esperteza é antiga: já em 1812 o governador
Elbridge Gerry, de Massachusetts, sancionou um mapa eleitoral manipulado, para
beneficiar seu partido. Jornais da oposição apontaram que um dos distritos era
tão distorcido, para aproveitar a distribuição geográfica dos eleitores, que
tinha a forma de uma salamandra, e inventaram a palavra gerrymandering
para descrever a prática fraudulenta.
O gerrymandering piorou ao longo destes dois
séculos, tirando proveito de novas técnicas matemáticas e computacionais.
Recentemente, o assunto foi parar mais uma vez na Suprema Corte americana. Em
causa o mapa eleitoral do estado do Wisconsin, manipulado pela assembleia estadual
de maioria republicana. Mas uma eventual decisão poderá afetar muitos outros
estados, dos dois partidos.
A grande questão é: como decidir se um mapa distrital é
abusivo ou não? Em 1964, a Suprema Corte concluiu que não temos como definir
padrões claros, práticos e politicamente neutros. Mas em 2004 o ministro
Anthony Kennedy, considerado voto decisivo na questão, expressou a esperança de
que os avanços que estão tornando o gerrymandering mais sofisticado
também possam fornecer meios para controlá-lo.
Essa é a base das novas ações, com os opositores ao gerrymandering
propondo a adoção de certos critérios matemáticos, dos quais o mais popular
é a lacuna de eficiência. Para explicar como funciona voltemos ao exemplo com
três distritos.
Em cada distrito, os democratas desperdiçam 4.500 votos,
já que não elegem ninguém, e os republicanos desperdiçam 499 votos, pois
bastariam 5.001 para eleger o deputado. No estado todo são 13.500 votos
democratas e 1.497 votos republicanos desperdiçados. A diferença dá 12.003
votos, que é 40,01% do número de eleitores do estado: esse percentual é a
lacuna de eficiência do mapa.
Os defensores de mudanças na lei propõem que a lacuna de
eficiência não possa ultrapassar certo valor máximo, por exemplo 7%. Por esse
critério, 15 estados (quase todos republicanos) teriam que refazer seus mapas
eleitorais atuais.
O problema é fazer os ministros entenderem a matemática!
O próprio presidente da Suprema Corte, John Roberts, declarou que a coisa lhe
parecia matematiquês sociológico incompreensível. E ele tem
graduação em história e em direito pela universidade Harvard.
Felizmente, também há juízes mais bem (in)formados, que
defendem um papel significativo da matemática na defesa dos direitos
constitucionais dos eleitores. Resta ver que postura vai prevalecer nessa
questão. Em todo caso, o episódio ilustra bem por que cultura matemática não
pode ser só para matemáticos, tem que ser para todos.
10 questões para o professor de matemática
Na coluna de 7 de julho de 2017 discuti o livro
"10 questões para o professor de matemática... e como o Pisa pode ajudar a
respondê-las", publicado mundialmente pela Organização para a Cooperação e
o Desenvolvimento Econômico (OCDE), e mencionei que estávamos em contato com a
OCDE para contratar a tradução para o português.
O leitor Thiago Pandim, engenheiro de Goiânia, me
escreveu logo em seguida, oferecendo fazer a tradução integral desse livro que,
em sua opinião, auxiliaria pais, educadores e gestores públicos a melhorar a
qualidade do ensino de matemática no Brasil. Entre os motivos de seu generoso
oferecimento, mencionou: "Meu primeiro filho está com 10 meses e não quero
que ele cresça em um país que não se importa com matemática e com
ciência."
Graças
à colaboração de Thiago, o Impa e a Sociedade Brasileira de Matemática acabam de
disponibilizar "10 questões" em português, gratuitamente, em seus
websites.
Marcelo
Viana - matemático e diretor-geral do
Impa, é ganhador do Prêmio Louis D., do Institut de France.
Fonte:
coluna jornal FSP