Quando
o tempo que está pela frente fica menor do que o que já passou.
“O
outono não é um raio num céu azul. Há sintomas prévios. A primeira vez que nos
chamam de tio é um alerta.
A percepção se acelera quando alguém nos cede um
lugar no metrô lotado. Por fim, o elogio que mata o último botão da nossa
fantasia de juventude finda, é disparado: você está bem para a idade …
Pronto!
Chegamos lá: a região obscura depois do cabo da Boa Esperança” – diz um trecho
desse precioso texto.
Há maneiras bonitas de descrever o processo.
A metáfora poética
da geada dos anos clareando cabelos, por exemplo. Shakespeare, no soneto 19,
lembra que o tempo voraz cega as garras do leão e subtrai dentes ao tigre.
Inconformado, pede o poeta que o rosto de seu amor seja poupado da devastação
cronológica.
Como todo conceito incômodo, o envelhecimento apresenta
denominações diversas: do suave “melhor idade” até o cruel “zona do desmanche”.
Rubem Alves sugeria o lirismo de “pessoas com o crepúsculo no olhar”.
Cícero refletiu sobre o processo na obra De Senectude, mesmo
título do italiano Norberto Bobbio. Ecléa Bosi, no livro Memória e Sociedade,
criou parágrafos lapidares sobre a idade.
Simone de Beauvoir trata do conceito
no texto Da Velhice. No fim da sua vida e de Sartre, aumentou a secura
analítica no livro A Cerimônia do Adeus. Lembrei-me dos textos ao ver o filme
Amor, de Michael Haneke, um dos mais belos e duros que já assisti.
A cor da vida é a cor da morte, assegura sábio
ditado. Jovens chatos serão velhos chatos.
Um adolescente brilhante tem chance
grande de gerar um ancião da mesma cepa. No fundo, gente velha é igual a gente
jovem, só que velha …
Qual seria, de fato, nosso medo? Provavelmente, o receio
dialoga com a questão da perda de relevância e de controle, especialmente sobre
o nosso corpo.
O físico tem uma lógica particular. Deus permitiu que Jó
perdesse todos os bens e seus dez filhos. O paciente sofredor resistiu,
epicamente.
Só depois, o Criador autoriza uma doença grave sobre o
protagonista. O que podemos deduzir?
Perder bens e perder filhos constituem
males menores do que a fraqueza corporal em si.
Em parte, como queria Espinosa,
sou o meu corpo. Não existem duas instâncias separadas, mas uma só. Meu corpo
não contém o meu ser, ele é o que sou. Velhice é a consciência do limite da
matéria.
O outono não é um raio num céu azul.
Há sintomas prévios. A
primeira vez que nos chamam de tio é um alerta. Uma mulher de 30 anos olha com
docilidade e insinua: você gosta de mulheres mais jovens?
O Don Juan cinquentão
estremece. Em breve surge o primeiro refluxo após um pouco mais de álcool à
noite.
As letras teimam em diminuir diante das retinas cansadas. Incorporamos
palavras complexas ao vocabulário: presbiopia, estatinas, colonoscopia … Nossa
casa fica cada vez mais confortável e a rua mais desafiadora.
A nécessaire de
remédios aumenta a cada ano.
A percepção se acelera quando alguém nos cede um lugar no metrô
lotado, ainda com o sorriso generoso de um bom escoteiro que ampara Matusalém
na reta final.
Por fim, o elogio que mata o último botão da nossa fantasia de
juventude finda, é disparado: você está bem para a idade …
Pronto! Chegamos lá:
a região obscura depois do cabo da Boa Esperança. Carimbamos o passaporte para
a terra sem volta. O que está pela frente fica menor do que o que passou.
Há pessoas otimistas e pessimistas. As duas posturas
envelhecerão. Lutar contra o tempo é como rebelar-se contra a lei da gravidade.
Angustiar-se com a idade é temer a chegada do fim do dia ou das fases da lua.
Não existe maneira indolor de viver o processo, mas há coisas objetivas a
considerar.
Hegel notou que a coruja de Minerva levanta seu voo apenas com
as sombras da noite.
Esta era a análise tradicional para indicar que a ave
símbolo da reflexão e ponderação (dedicada à deusa da sabedoria Minerva)
consegue subir no instante do declínio da luz.
Sabedoria nunca é alcançada cedo
e nem sempre a tempo. Não existem garantias, mas a tradição ensina que podemos
melhorar com o tempo. A diminuição dos movimentos rápidos dos anos de vigor
máximo colaboram para isto. O carro vai mais devagar e a paisagem é mais clara,
ainda que com óculos.
É uma idade de sinceridade. Crianças, velhos e bêbados têm um
compromisso maior com a verdade. Nem sempre ficamos pacientes, mas cresce a
autenticidade. A idade madura abre os olhos para as coisas essenciais.
Idade do fim? Há controvérsias. Para muitos é o momento de
começar a fazer o que realmente gostam.
Cora Coralina publicou seu primeiro
livro de poesia com quase 76 anos. Konrad Adenauer reergueu a Alemanha
Ocidental entre 73 e 87 anos, a mesma Alemanha que Hitler começara a destruir
aos 43 anos.
Ulysses Guimarães, respondendo aos que o achavam velho demais
para candidatar-se à presidência, gostava de lembrar que, em oposição ao
experiente Adenauer, Nero tocou fogo em Roma aos 27 anos.
Aliás, a obra máxima
do doutor Ulysses, a promulgação da Constituição de 1988, foi feita na véspera
de ele completar 72 anos.
Por fim, quando o mundo não precisa ser mais conquistado, ele
pode ser fruído. Há mais tempo para isto. Os ritmos podem ser respeitados.
Há
vagas em estacionamento e preferência nas filas. De quando em vez, surgem
netos, um estágio superior de paternidade e maternidade.
Alguns possuem mais
dinheiro na maturidade do que na juventude. Perdemos a obsessão com o
julgamento alheio. Quase sempre saímos do jogo da sedução.
Há melancolia e libertação no processo. As cabeças não se voltam
mais logo que entramos.
Como muitos perceberam, aumenta nossa invisibilidade
para o mundo. Na infância, eu achava que o homem invisível da televisão poderia
fazer quase tudo.
Os seres crepusculares podem! As corujas voam mais livres no
fim.
LEANDRO KARNAL – historiador, escritor.