Por redes sociais mais humanas
Mídias
hackearam nossos piores instintos; um futuro decente exige seu redesenho
radical.
A esta altura do campeonato, qualquer pessoa
razoável já está ciente de que o buraco onde nos enfiamos tem muito a ver com a
arquitetura das redes sociais na internet.
Sim, é claro que a ascensão global do neofascismo, responsável por produzir as cenas lamentáveis de terrorismo em Brasília,
teve gênese multifatorial.
Mas essa ascensão jamais teria sido tão vigorosa sem
as máquinas de produção e disseminação de mentiras e maluquices
disponíveis em qualquer smartphone hoje em dia.
A questão é o que fazer a
respeito.
Por enquanto, só ficou claro o que não funciona.
Que me perdoem os adeptos da liberdade de expressão como panaceia, mas
achar que programas de checagem de fake news ou o jornalismo tradicional feito
com esmero são capazes de competir com o tsunami de chorume que nos banha
continuamente é de uma ingenuidade de dar dó.
É muito mais fácil capturar a
atenção e os corações do público quando não se tem compromisso com os fatos.
"Nossa, então você quer censura, é?",
perguntarão alguns. Não –o buraco é bem mais embaixo.
É preciso achar caminhos
para uma reforma profunda das redes sociais que
seja, ao mesmo tempo, "cega" para conteúdos específicos –evitando,
portanto, qualquer tipo de censura prévia– e capaz de cortar pela raiz o viço
daninho que elas adquiriram.
Digo isso porque, na prática, as redes sociais não
passam de um grande experimento de psicologia social, projetado para hackear os
piores instintos humanos.
E isso começa com o elemento mais básico de todos: o
fato de que a evolução simplesmente não nos "projetou" (capriche
mentalmente nas aspas aí) para interações quase simultâneas com centenas ou
milhares de pessoas desconhecidas, muito menos quando essas interações não
acontecem cara a cara.
Sem as nuances de tons de voz e expressão facial e,
talvez mais importante ainda, sem os riscos trazidos pelo comportamento
grosseiro ou desvairado quando ele acontece ao vivo, abriu-se a porteira para
que as pessoas proferissem absurdos ou perseguissem desconhecidos de uma forma
que jamais teriam coragem de fazer longe de uma tela de computador ou celular.
Mas há mais ingredientes nesse caldo tóxico.
A
simples invenção da "linha do tempo", com sua atualização infinita do
que os "amigos" estão dizendo, é um poderoso indutor de ansiedade e inimigo
da reflexão.
As caixas de comentários transformam qualquer possível diálogo num
palco, no qual vale tudo para conquistar a atenção dos desconhecidos.
E o
sistema de "recomendações", que mede apenas engajamento (ou seja,
quantos estão "curtindo" ou comentando), comprovadamente tende a
carregar os usuários rumo a conteúdos cada vez mais extremistas.
Agências regulatórias –idealmente, em nível
internacional– precisam intervir para que todas as empresas responsáveis pelas
mídias sociais modifiquem os mecanismos de incentivo aos comportamentos tóxicos.
Cientistas da computação e psicólogos podem colaborar para formular e testar as
melhores intervenções, é claro.
Mas imagine o que aconteceria, por exemplo, se
todas as caixas de comentários fossem magicamente abolidas.
Ou se, a cada
mensagem que você fosse enviar, aparecesse antes o aviso "Você diria mesmo
isso a Fulano de Tal se estivesse fisicamente ao lado dele?" por 30
segundos.
Colocar esse tipo de ideia em prática, é claro,
equivale a enfiar uma chave de fenda nas engrenagens do modelo de negócios
predatório e desumanizador graças ao qual as plataformas de redes sociais vicejaram até agora.
Pois que seja. Será que alguém acha mesmo que meia dúzia de bilionários são
mais valiosos do que o futuro do projeto democrático?
REINALDO JOSÉ LOPES - jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de
"1499: O Brasil Antes de Cabral".