Não há combate indolor à inflação
Escalada
dos juros para conter o atual surto inflacionário é um remédio amargo, mas
essencial para a retomada do crescimento sustentado
A estabilidade de preços é essencial para sustentar
o máximo nível de emprego e atividade econômica.
Contudo, não existe combate à
inflação sem alta relevante de taxas de juros e,
portanto, sem indesejáveis efeitos colaterais: contração na atividade e aumento
temporário de desemprego.
Essa foi a conduta adotada pelo Federal Reserve (o banco central dos Estados Unidos)
sob o comando de Paul Volcker (1979 a 1987), e ainda hoje sabemos que a melhor
escolha social ao longo do tempo é o controle permanente da inflação.
O combate aos surtos traz custos
sociais, ainda que temporários.
Não o fazer implica aceitar a estagflação, com o agravante de acentuar a
desigualdade de renda, perder coesão social e, no limite, alimentar regimes
políticos autoritários.
Não há meio-termo no combate à inflação; é
essencial não deixar dúvidas sobre o engajamento da autoridade monetária.
Nos anos 1980, depois de
dois choques nos preços do petróleo e de uma sucessão de apertos monetários
pouco convincentes, Volcker impôs um choque de juros nos EUA pelo tempo
necessário para quebrar a inércia inflacionária.
Obviamente, o custo foi gigantesco —recessão entre
1981 e 1982, além da quebradeira nos países com alta dívida em dólares, caso
típico na América Latina. Entretanto, abriu espaço para duas décadas de
crescimento global sustentado.
O surto inflacionário atual teve como causa choques
concomitantes, decorrentes da pandemia e, agora, da guerra entre Rússia e Ucrânia.
A média dos
preços internacionais de commodities subiu 50% em dólares desde 2020; mais de
80% em reais.
Além da inédita injeção de estímulos, que provocou desvios de
demanda, tem havido interrupções de cadeias produtivas e logísticas por
lockdowns e questões geopolíticas.
A combinação desse descasamento entre oferta
e demanda com o excesso de liquidez global e com aumento do risco nos mercados
de ativos traz maior complexidade para o trabalho das autoridades monetárias.
Os bancos centrais vêm fazendo seu papel, embora claramente
atrasados no processo. Passada a fase inicial de crença de que a inflação seria
temporária, ficou evidente que a alta dos preços se disseminou para salários e
serviços.
Não faltam instrumentos de combate, mas estes são brutos.
Como a
desorganização das cadeias globais demora para ser corrigida, o remédio é
conter a demanda por meio do aumento dos juros.
Se as autoridades demonstrarem
temer os custos sociais de uma política monetária fortemente contracionista, em
vez de evitados, esses custos só serão prolongados e implicarão ainda mais
sacrifícios sociais.
Nos últimos 12 meses, a inflação ao consumidor
acumulou alta de 8,3% nos Estados Unidos; 8,1% na Europa; 9,7% na América
Latina e 12,1% no Brasil.
Para muitos, trata-se da primeira experiência de
convívio com inflação próxima a dois dígitos. E, para os que a experimentaram,
o nível atual de inflação traz à memória duas décadas de crescimento baixo,
errático, poucas oportunidades e aumento de desigualdade.
Só depois disso o mundo colheu um período de
crescimento sustentado.
A fartíssima liquidez injetada desde 2020 (14% do
PIB global) ajudou a construir riqueza monetária artificial, que tende a ser
destruída com a normalização monetária.
Isso já começa a ocorrer em mercados de
maior risco, como ações de tecnologia e criptoativos.
Para os governos, no
primeiro momento, a inflação ajuda a aumentar receitas públicas automaticamente
e, ao contrário da desinflação, ofusca a dura realidade dos desequilíbrios
fiscais estruturais.
Assim, os riscos do processo de desinflação global
são imensos e dizem respeito à estabilidade dos mercados financeiros.
Os bancos centrais têm
conseguido convergir na tese do necessário combate à deterioração das
expectativas inflacionárias.
A evidência empírica sinaliza que os juros e a atividade
são mais sensíveis às expectativas do que à inflação corrente.
É pelo canal das
expectativas que os produtores e trabalhadores buscam recompor preços e
salários.
No Brasil, o BC começou mais cedo a subir juros,
porque a inflação começou a piorar mais cedo.
Se, de um lado, a taxa Selic, que
chegou à mínima histórica de 2% ao ano, chegará a 13,5% ao ano na nossa visão,
de outro, serão 13 meses com inflação em dois dígitos.
Há medidas paliativas de
desoneração em itens essenciais com preços regulados (combustíveis e energia
elétrica), o que eleva o risco sobre as contas públicas e, em alguns casos,
sobre o ambiente de negócios.
Nesse ínterim, os preços de alimentos já acumulam
alta de 30% desde agosto de 2020, atacando frontalmente o poder de compra da
população de baixa renda.
Se acreditarmos na atuação firme da política
monetária, será possível haver recessão no Brasil a partir do fim deste ano até
meados do próximo.
E ainda estaremos suscetíveis aos impactos do processo
incerto de desinflação global.
Contudo, a recessão será tão menos aguda e mais
passageira quanto mais convencidos estivermos de que não há combate à inflação
sem dor.
É papel dos governos optar sabiamente por políticas que amenizem o
sofrimento da parcela mais vulnerável da população, mas sem remar contra a
política monetária.
Evitar uma correção da inflação ainda mais custosa do ponto
de vista social depende essencialmente das escolhas públicas.
ANA PAULA VESCOVI - economista-chefe
do Santander Brasil