A universidade que queremos e
precisamos
A agenda pós greve
de docentes de Instituições Federais de Ensino
A greve recente das instituições de ensino
federais, as universidades e os institutos, trouxe algumas reflexões,
especialmente sobre o que trouxe de produtivo, já que críticas não faltaram.
Em
tempos passados mobilizações e paralisações foram importantes para que o
sistema público fosse mantido, ampliado e considerado o mais qualificado, não
apenas no Brasil como na América Latina.
Mas, talvez o mais importante das
mobilizações passadas tenha sido resistir, tanto à ditadura militar para depois
conquistar a democratização, quanto combater e enfrentar os períodos de
intempéries econômicas, ou de bolsonarismo avassalador, com diferentes formas
de luta, não apenas greves.
Também importante salientar que as mobilizações em
nada prejudicaram a qualidade destas instituições tanto na formação de pessoas
informadas, críticas, como de profissionais que se destacam em todos os setores
da sociedade.
Basta ver quantos dos importantes intelectuais, empresários,
políticos, jornalistas, artistas, médicos e cientistas, adquiriram suas
formações nas universidades públicas do país.
Na última segunda-feira, terminou a greve dos
docentes das universidades e dos institutos federais, que contou com a adesão
de mais de 60 instituições por mais de dois meses (a greve dos técnicos, há
três meses parados, ainda continua).
Ao final de um período de mobilizações e
negociações como esse, há os que criticam, os céticos, e os que apoiam, há os
que se dizem vitoriosos, os que acham que foi o acordo possível, e os que se
sentem derrotados.
Para além de uma análise superficial apenas considerando
"qual foi o ganho salarial da greve", trazermos alguns outros
elementos da conjuntura, as causas e também o que significou essa paralisação
em termos de futuro.
Não foram poucos os ataques que as Instituições
Federais de Ensino Superior (IFES) sofreram ao longo do tempo. Houve um tempo
de perseguição e exaustão.
Mais recentemente, os professores universitários,
que passam suas vidas estudando, formando pessoas e produzindo conhecimento,
foram chamados de "zebras gordas".
Ainda agora há os que ousam chamar nossas estudantes de "vagabundas".
E o pior, tem adeptos. Em pesquisas realizadas pelo Centro SoU_Ciência sobre a
percepção das universidades, 32,2% dos apoiadores de Bolsonaro acreditavam no
momento da pesquisa, que as universidades públicas são locais de doutrinação e "balbúrdia".
Apesar dos ataques ideológicos e dos inúmeros
cortes orçamentários, das perdas salariais, da interferência na escolha dos
dirigentes, da precarização das carreiras, do colapso da infraestrutura, da
interrupção da expansão e das tentativas de privatização que se perpetuam por
décadas, as universidades e os institutos, mesmo pressionados por sistemas de
produtividade e desempenho, jamais se esqueceram de sua função social e de seu
compromisso com a nação.
O exemplo mais emblemático foi o período entre 2019
e 2022, tanto pelos problemas já elencados acima quanto pelo enfrentamento à
pandemia com unidade e com toda a nossa força.
Produzimos muito, salvamos vidas
e muitos de nós perderam a vida ou a saúde por isso ou foram duramente
impactados por atos criminosos.
O Painel da Pandemia que
publicamos em 2022, apresenta uma pequena amostra da contribuição com mais de
mil ações realizadas por 40 universidades federais em todo o país.
No início da mobilização deste ano, o que chamou a
atenção foi o fato de ter ocorrido em um governo liderado pelo Presidente Lula,
que valoriza as IFES e que criou tantas universidades em seus governos
anteriores.
Por conta disso, ouviu-se que a greve não deveria ocorrer agora,
num momento em que barramos temporariamente a consolidação do autoritarismo
extremista no Brasil liderado por Bolsonaro.
Ou ainda, que deveríamos ter feito
greve durante o governo Bolsonaro e não fizemos.
É necessário relembrar: as universidades estavam no
enfrentamento à barbárie em 2019 quando ocorreu o "tsunami da educação",
as maiores manifestações de rua contra o governo Bolsonaro.
Contudo, entre 2020
e 2022 houve a maior crise sanitária e social de nossas gerações.
Além disso, o
governo Bolsonaro tinha como missão declarada a destruição de tudo que é
público, inclusive e sobretudo das universidades, o que conduziria a greve a um
impasse de autodestruição, provavelmente sem chance de trazer avanços com quem
despreza as universidades.
Por isso, o combate ao autoritarismo neofascista e
negacionista foi nossa prioridade, em detrimento de nossos salários.
Assim, é preciso deixar claro que a greve de 2024
não foi contra o governo do Presidente Lula, que teve grande apoio das
universidades e institutos federais para sua eleição. Tratou-se muito mais da
busca pela valorização de professores e técnicos que atuam, lutam, resistem e
se dedicam a suas instituições.
Era o momento de disputar os rumos do país e o
destino dos fundos públicos nessa fase de reconstrução nacional, em que a
educação, a ciência e as universidades têm tudo para ser novamente valorizadas
e colaborar com um desenvolvimento justo e sustentável, amparado em
conhecimento socialmente produzido e evidências científicas, passada a fase
sombria que vivemos.
É sempre bom lembrar que a renúncia fiscal para
empresários representa perda de arrecadação de 500 bilhões de reais ao ano, e o
pagamento de juros e principalmente da dívida pública consome 1,8 trilhão de
reais (ou 45% do orçamento federal em 2022).
O orçamento do Ministério da
Educação gira em torno de 150 bilhões de reais, números que traduzem a falta de
prioridade do setor.
Outro aspecto que chama a atenção e que foi
mencionado em um artigo recente do ex-reitor Roberto Leher, diz
respeito ao encontro de gerações.
Temos agora um grande número de docentes mais
jovens que entraram em um novo regime de previdência e que vivem o dilema do
que será o seu futuro, além dos baixos salários de um professor em início de
carreira.
O movimento de 2024 não era somente pelo famigerado reajuste de
salários, que virá somente em 2025, mas também por um rearranjo na carreira, de
tal forma a corrigir distorções principalmente para um jovem pesquisador que
luta por permanecer no setor público, realizando pesquisas e projetos sociais
de relevância.
O movimento grevista também trouxe a necessidade de
apresentar soluções para o orçamento de custeio (manutenção) e capital (obras,
reformas, equipamentos e livros) das IFES, visando recompor as condições de
trabalho ao nível do que tínhamos antes de Bolsonaro.
Nunca devemos esquecer
que o corte no custeio chegou a 45% e o de capital a 97% durante o governo
anterior, conforme mostra o nosso Painel do Financiamento.
Apesar do esforço feito pelo governo Lula logo no início de 2023, ainda
precisamos continuar avançando e de maneira planejada.
É necessário vislumbrar
não apenas como encerrar o ano de 2024, mas também como podemos continuar em
2025 e nos anos seguintes.
O anúncio feito pelo Presidente e pelos Ministros
no dia 10/6 foi importante e trouxe a expectativa de um
atendimento às necessidades para suprir o custeio, embora precisemos de mais,
pois o perfil de nossos estudantes atualmente é de maior vulnerabilidade
social, e as condições de ensino serão chave para a permanência e a conclusão
de seus estudos.
O término das obras que foram paradas pela falta de verba no
governo Bolsonaro, assim como o início de outras obras importantes para o
sistema, a exemplo de institutos de pesquisas e hospitais universitários anunciados,
serão muito significativos para o futuro das IFES.
Contudo, salientamos que é
necessário aprimorar esse planejamento para o repasse dos recursos, isto é, que
ocorra uma distribuição equânime e justa.
Nesse sentido, faz-se necessária uma proposta
consistente e que abarque, além das obras previstas no PAC: a recomposição
orçamentária de médio e longo prazo das universidades; as políticas de acesso e
permanência dos alunos (os recursos estão congelados em valores de dez anos
atrás e não há política de moradia estudantil); a consolidação do programa de
expansão anterior (o Reuni iniciado 2007), que conta com muitos cursos ainda
precários, com falta de docentes, técnicos e infraestrutura; o fortalecimento
das ações de extensão e atuação social e comunitária das universidades; uma
política de qualificação dos laboratórios de pesquisa e parques tecnológicos; o
fomento ao ingresso, de fato, das universidades na era digital-informacional; a
articulação das universidades com políticas públicas na qualificação da tomada
de decisão dos gestores; a atualização de legislação e regulação do setor de
ensino superior como um todo, incluindo a ampliação do controle sobre a
expansão desmesurada do ensino a distância etc.
Do ponto de vista das carreiras docentes, houve
algum ganho com a greve, porém precisamos avançar mais se quisermos manter os
jovens doutores no sistema público, ou mesmo em nosso país, já que muitos estão
saindo para outras propostas devido à baixa valorização e à falta de
perspectiva de futuro.
Por outro lado, também é necessário valorizar os
pesquisadores mais experientes, que podem contribuir muito com o que
construíram, sem esquecermos dos que hoje estão aposentados.
Esperamos que as
mesas de negociações continuem abertas, pois é preciso corrigir distorções,
além de um plano de recuperação salarial.
A greve de 2024 foi mais um elemento na história
das IFES e mostra o quanto essas grandes instituições têm importância e são
fundamentais para o presente e para o futuro. A greve não poderá ser só a greve
e os docentes não são "grevistas" como gostam insinuar alguns.
Como
patrimônio da nação, as IFES e seus servidores, desenvolvem e continuarão
atuando com força não apenas na formação de pessoas, mas também na produção de
conhecimento e no atendimento à população.
Todavia, é preciso olhar para elas e para o lugar
que ocupam, lembrando o quanto governos autoritários tentaram destruí-las e
quanto custará para a sociedade se elas forem destruídas de fato ou
desvirtuadas.
Todos serão afetados, ricos e pobres, e não apenas professores,
técnicos e estudantes. A greve termina com muitos objetivos alcançados e, o
mais importante, com uma reflexão que todos devemos fazer se não quisermos
mergulhar na barbárie outra vez.
Retomemos a agenda pública mais ampla para
fortalecer a "universidade necessária" (Darcy Ribeiro) ao nosso
presente e futuro como nação.
O que o Brasil precisa é de um projeto amplo e
consistente de modernização das universidades públicas para o século 21, para
enfrentar os desafios atuais e históricos, integrando-as cada vez mais na
solução dos problemas do nosso povo, em diálogo com a sociedade, com as
políticas públicas, e estruturando o nosso desenvolvimento com equidade e
justiça social e ambiental.
Afinal, o que será do enfrentamento à crise
climática, às novas pandemias, à transição energética, à pobreza e à fome, ao
encarceramento em massa, à desigualdade brutal, sem a ação decisiva das nossas
universidades?
É possível um "governo de reconstrução nacional" sem
uma aliança estratégica com as universidades?
SORAYA SMAILI
Farmacologista da Escola Paulista de Medicina da Unifesp
e ex-reitora da universidade (2013-2021); coordenadora do Centr
MARIA ANGÉLICA
MINHOTO
Pedagoga e
economista, doutora em Educação pela PUC-SP. Professora associada da Educação
da Unifesp. Coordenadora do Centro de Estudos Sociedade, Universidade
e Ciência, o Sou_Ciência
PEDRO ARANTES
Arquiteto e urbanista, é professor da Unifesp e
coordenador do SoU_Ciência