A quarentena imposta pelo Covid-19, e os mais de 290
milhões de alunos impossibilitados de frequentar a escola, tem convidado
educadores em todo o mundo a refletir sobre suas próprias crenças, dificuldades
e resistências frente ao uso das tecnologias aplicadas à educação, e,
principalmente, sobre a presente necessidade do ensino híbrido. Metodologias de
ensino e aprendizagem existem na gênese de todos os processos de educação
formal, mas se transformam com o tempo, à medida que enfrentamos os problemas
não só da vida pessoal, como também da experiência coletiva.
Desde o início do período de quarentena, muitas ações
têm sido conduzidas para que alunos não se prejudiquem, academicamente, pelo
distanciamento social. As escolas têm usado aulas on-line, envio de conteúdos
por aplicativo, videoconferências, e até mesmo o uso de mídias sociais, para
ajudá-los durante esse período. No entanto, vale a reflexão de como a educação
chegou ao ensino híbrido. Houve quem protestasse, na antiguidade remota, em
favor da manutenção do ensino difuso e pautado exclusivamente na oralidade, sem
que ninguém estivesse especialmente destinado à tarefa de ensinar. Contudo, a
escrita surge como uma necessidade diante das transformações técnicas e do
aparecimento das primeiras cidades em decorrência da produção excedente e do
comércio.
Por meio dela, captou-se o tempo no espaço da matéria,
permitindo o surgimento das primeiras escolas “sob as figueiras”. Houve quem
desacreditasse da importância da filosofia nascente, alegando que o ensino
deveria continuar voltado para a preservação das tradições e da cultura
milenar. Entretanto, o desenvolvimento das cidades-estados gregas e o
nascimento da democracia, provocaram mudanças significativas na vida social e
nas relações humanas, levando Sócrates, Platão e Aristóteles a transformarem o
curso do ensino, respectivamente, por meio da maiêutica (multiplicação de
perguntas, induzindo o interlocutor na descoberta de suas próprias verdades) na
defesa da educação científico-filosófica e do Organon.
Houve quem duvidasse, ainda, dos estudos sobre o
conhecimento trazidos à tona pelos pensadores da Renascença, insistindo na
manutenção de um ensino centrado na figura do mestre, na memorização e na
correção pelo castigo. Todavia, as transformações sociais decorrentes do
crescimento das manufaturas e do pensamento liberal criaram as condições para
que Rousseau defendesse, em Emílio ou da educação, a centralidade do ensino na
criança, a fim de que ela aprendesse a pensar, não como um processo imposto de
fora para dentro, mas naturalmente, de dentro para fora, estabelecendo um marco
na pedagogia contemporânea.
Houve quem desprezasse o espírito de independência e
iniciativa da criança, argumentando em favor da disciplina e do domínio de
conhecimentos teóricos. Porém, com o crescimento da indústria e a explosão
demográfica nas cidades – impulsionadas por um novo ideal de democracia -, o
conhecimento científico começa a exercer influência na educação, fazendo com
que Dewey, filósofo norte-americano que influenciou educadores de várias partes
do mundo, e Montessori, que foi responsável por renovar o
ensino, passassem a defender a necessidade de educar as crianças por meio
de metodologias ativas, considerando a escola não como preparação para a vida,
mas a própria vida.
Houve quem visse loucura na introdução de processos de
aprendizagem mediados por máquinas, argumentando que o contato físico com o
professor seria a única forma de levar o aluno ao conhecimento. Não obstante, a
globalização econômica, acompanhada da revolução tecnológica e digital, e da
crescente automação das empresas, produziu profundas mudanças também no campo
da educação, ensejando o surgimento da Educação a Distância (EaD).
E, ainda hoje, há quem lance sarcasmo sobre a utilização
de abordagens e metodologias como o ensino híbrido, a aula invertida, a
gamificação e outras formas de utilização das ferramentas digitais na educação
sob pretextos diversos. Ainda assim, a pandemia do novo coronavírus trouxe
consigo, como outrora, a necessidade premente de professores, escolas e
gestores educacionais reavaliarem as suas próprias concepções de ensino, diante
da necessidade de se colocar o aluno, mais do que nunca, de forma ativa e na
centralidade do processo educativo.
Com isso, realiza-se uma verdadeira corrida para
compreender como utilizar as diversas ferramentas tecnológicas existentes em
favor da continuidade desse processo. Como é fácil observar, o ano de 2020
será marcado pela educação, como sendo o ano do ensino híbrido, ou seja, de um
ensino que começou de modo presencial (da forma como cada qual se acostumou a
fazer), mas que, por força da pandemia, nos impõe o trabalho remoto, suscitando
discussões importantes sobre democratização e acesso à tecnologia e antecipando
transformações educacionais que talvez levassem décadas para ocorrer.
Aproveitemos, assim, o tempo presente para educarmos a
nós mesmos. A situação atual requer uma nova reflexão sobre o nosso papel como
educadores das futuras gerações, o que inclui necessariamente uma reflexão
sobre os métodos, os pressupostos e as ferramentas que utilizamos no dia-a-dia.
A despeito de nossas resistências individuais, a necessidade de letramento
digital nunca esteve tão urgente. E muitos de nós somos, neste momento, tão
aprendizes quanto nossos próprios alunos.
Marcelo de Cristo -
pesquisador, professor, escritor e tutor de cursos de certificação de
professores (CELTA) pela Universidade de Cambridge, tendo atuado na formação e
desenvolvimento de professores no Brasil, América Latina e Reino Unido.
Atualmente, é especialista educacional da International School.
Fonte: Harvard Business Review