Milagres
que vi não minimizam horrores da fé, como assédio ou extorsão.
A estrada BR-060 traça um risco que divide em dois o
estado de Goiás. E também parte ao meio a pequena Abadiânia,
longe dos roteiros turísticos que levam à sinuosa Brasília ou à colonial
Pirenópolis.
No sentido de quem vai para Goiânia, a porção à esquerda
mostra uma Abadiânia
típica do interior: praça, prefeitura, correio, fórum, igreja. Mas, entrando à
direita, vê-se um outro mundo, com outro turismo. Saindo da estrada pela rua
Quatro, os próximos mil metros oferecem uma progressiva mudança de paisagem.
Aos poucos ela vai sendo ocupada
por pessoas afáveis vestindo branco, pousadas e lanchonetes onde reina uma
estranha calma, bares sem álcool nem barulho. Até chegar à fonte desta
inesperada atmosfera: um conjunto simples pintado de branco e azul, chamado
Casa de Dom Inácio, onde oficiava o médium João de Deus
até, poucos dias atrás, ele ser alvo de acusações
de abuso sexual.
Como a cidade, seu principal personagem também é cindido
em dois. Acompanhando uma pessoa querida com problemas de saúde, estive ali
várias vezes 15 anos atrás. Habituei-me a ver, sentado com olhar perdido e
impassível, murmurando palavras a cada pessoa de filas intermináveis, aquele
homem sereno e paciente exsudando bondade.
Uma vez espanto-me ver o outro daquele, o João
fora do transe. Vi no modesto açougue da estrada o caboclo com jeito de matuto
(ainda que rico de garimpo e de fazenda), fumando despudoradamente, falando
alto com um companheiro igualmente mazzaropiano, comprando quilos de costela bovina
para um churrasco.
Diz-se na região —e no mundo—
que aquele João de Farias é uma pessoa comum, mas com um dom mediúnico. Pelo
qual ele receberia espíritos de médicos do além, capazes de curar
os mortais.
Sou agnóstico o suficiente para duvidar de espíritos milagrosos se apossando de
pessoas. E materialista o bastante para não ignorar o que vejo só porque não
saiba explicar.
É fato concreto que aquele João de Deus em que o outro
João se transforma, estopim de tantas curas já relatadas, de vez em quando
levanta, arranca muletas ou cadeiras de roda, e fala “anda!”, impaciente como
quem enxota um teimoso —e o teimoso, fazer o quê, sai andando. E eu, vendo.
João de Deus inside a treatment
room in the healing center's main building, in Abadiânia
O mesmo João, diante de mim, rasgou barrigas de pessoas
que permaneciam em pé e sem dor e sem sangue, enfiando-lhes nos ventres as mãos
nuas. Tudo depois recosturado por ele, com o paciente mais do que paciente:
impassível.
A ciência explicará isso, cedo ou tarde. Por ora já
descobriu que o efeito placebo é capaz de curas milagrosas —ainda mais
multiplicado num ambiente tão favorável, carregado pela credulidade cega. Mais
um pouco, explicará outros fenômenos que testemunhei.
Mas, diante das denúncias de abusos sexuais, a serem
confirmadas, qual dos dois seria o criminoso? Aquele de olhar perdido, tomado
por forças ainda misteriosas? Ou o rico matuto? O João fumante, fazendeiro,
churrasqueiro? O João imerso na paciente mansidão transmitindo conforto?
Pelos relatos, parece que ambos os personagens —ou o
mesmo personagem, em ambas as roupagens— teriam cometido os crimes.
E assim sendo, Abadiânia
—no lado mundano ou na porção espiritual— terá virado um só cenário de
atrocidades. O que, infelizmente, não será privilégio seu, mas dividido com
outros destinos, até de quem busca lugares “civilizados”.
Afinal, quem em Nova York se dirigia ao Greenwich
Village para jantar no badalado Babbo jamais imaginou que, na cozinha, o chef Mario Batali
por anos apalpava ferozmente assustadas cozinheiras.
Quem em Cannes, na chique Croisette do festival de
cinema, suporia ser ali o “campo de caça” para os estupros do produtor Harvey Weistein
(segundo a atriz Asia Argento,
mais tarde ela própria acusada de assédio, mas numa história para lá de
inconsistente)?
Quem em Los Angeles sonharia que o talento de Kevin Spacey,
merecidamente aplaudido, acobertava sua agressão sexual contra jovens atores?
Em nosso caso, é triste ver a ingenuidade de crentes ser
usada contra eles (já não bastam pastores milionários achacando o dízimo dos
pobres, perversa extorsão diante dos temores que os assaltam?).
Terrível também é ver esta violência ser anabolizada
pelo poder. Em tempos de fascismo redivivo, o país de Weistein tem um
presidente que diz tratar mulher “catando pelaxota”.
O país de João de Deus terá um que, afirma, só não
estupra uma mulher “porque ela éfeia” —e uma ministra daMulher que dá mais valor à sua estúpida “fábula” da goiabeira que ao
direito da mulher sobre seu corpo.
As mulheres, vítimas preferenciais do assédio, pelo
menos estão cada vez mais bravamente se manifestando para deter essas mensagens
que vêm do alto (mas não do além).
Josimar Melo -
crítico de gastronomia, autor do “Guia Josimar”, sobre restaurantes, bares e
serviços em São Paulo.