Abadiânia, Cannes, Nova York


Milagres que vi não minimizam horrores da fé, como assédio ou extorsão.

A estrada BR-060 traça um risco que divide em dois o estado de Goiás. E também parte ao meio a pequena Abadiânia, longe dos roteiros turísticos que levam à sinuosa Brasília ou à colonial Pirenópolis.

No sentido de quem vai para Goiânia, a porção à esquerda mostra uma Abadiânia típica do interior: praça, prefeitura, correio, fórum, igreja. Mas, entrando à direita, vê-se um outro mundo, com outro turismo. Saindo da estrada pela rua Quatro, os próximos mil metros oferecem uma progressiva mudança de paisagem.

Aos poucos ela vai sendo ocupada por pessoas afáveis vestindo branco, pousadas e lanchonetes onde reina uma estranha calma, bares sem álcool nem barulho. Até chegar à fonte desta inesperada atmosfera: um conjunto simples pintado de branco e azul, chamado Casa de Dom Inácio, onde oficiava o médium João de Deus até, poucos dias atrás, ele ser alvo de acusações de abuso sexual.

Como a cidade, seu principal personagem também é cindido em dois. Acompanhando uma pessoa querida com problemas de saúde, estive ali várias vezes 15 anos atrás. Habituei-me a ver, sentado com olhar perdido e impassível, murmurando palavras a cada pessoa de filas intermináveis, aquele homem sereno e paciente exsudando bondade.

Uma vez espanto-me ver o outro daquele, o João fora do transe. Vi no modesto açougue da estrada o caboclo com jeito de matuto (ainda que rico de garimpo e de fazenda), fumando despudoradamente, falando alto com um companheiro igualmente mazzaropiano, comprando quilos de costela bovina para um churrasco.

Diz-se na região —e no mundo— que aquele João de Farias é uma pessoa comum, mas com um dom mediúnico. Pelo qual ele receberia espíritos de médicos do além, capazes de curar os mortais.
Sou agnóstico o suficiente para duvidar de espíritos milagrosos se apossando de pessoas. E materialista o bastante para não ignorar o que vejo só porque não saiba explicar. 

É fato concreto que aquele João de Deus em que o outro João se transforma, estopim de tantas curas já relatadas, de vez em quando levanta, arranca muletas ou cadeiras de roda, e fala “anda!”, impaciente como quem enxota um teimoso —e o teimoso, fazer o quê, sai andando. E eu, vendo.


João de Deus inside a treatment room in the healing center's main building, in Abadiânia  

O mesmo João, diante de mim, rasgou barrigas de pessoas que permaneciam em pé e sem dor e sem sangue, enfiando-lhes nos ventres as mãos nuas. Tudo depois recosturado por ele, com o paciente mais do que paciente: impassível.

A ciência explicará isso, cedo ou tarde. Por ora já descobriu que o efeito placebo é capaz de curas milagrosas —ainda mais multiplicado num ambiente tão favorável, carregado pela credulidade cega. Mais um pouco, explicará outros fenômenos que testemunhei.

Mas, diante das denúncias de abusos sexuais, a serem confirmadas, qual dos dois seria o criminoso? Aquele de olhar perdido, tomado por forças ainda misteriosas? Ou o rico matuto? O João fumante, fazendeiro, churrasqueiro? O João imerso na paciente mansidão transmitindo conforto?

Pelos relatos, parece que ambos os personagens —ou o mesmo personagem, em ambas as roupagens— teriam cometido os crimes. 

E assim sendo, Abadiânia —no lado mundano ou na porção espiritual— terá virado um só cenário de atrocidades. O que, infelizmente, não será privilégio seu, mas dividido com outros destinos, até de quem busca lugares “civilizados”.

Afinal, quem em Nova York se dirigia ao Greenwich Village para jantar no badalado Babbo jamais imaginou que, na cozinha, o chef Mario Batali por anos apalpava ferozmente assustadas cozinheiras.

Quem em Cannes, na chique Croisette do festival de cinema, suporia ser ali o “campo de caça” para os estupros do produtor Harvey Weistein (segundo a atriz Asia Argento, mais tarde ela própria acusada de assédio, mas numa história para lá de inconsistente)?

Quem em Los Angeles sonharia que o talento de Kevin Spacey, merecidamente aplaudido, acobertava sua agressão sexual contra jovens atores?

Em nosso caso, é triste ver a ingenuidade de crentes ser usada contra eles (já não bastam pastores milionários achacando o dízimo dos pobres, perversa extorsão diante dos temores que os assaltam?).

Terrível também é ver esta violência ser anabolizada pelo poder. Em tempos de fascismo redivivo, o país de Weistein tem um presidente que diz tratar mulher “catando pelaxota”.

O país de João de Deus terá um que, afirma, só não estupra uma mulher “porque ela éfeia” —e uma ministra daMulher que dá mais valor à sua estúpida “fábula” da goiabeira que ao direito da mulher sobre seu corpo.

As mulheres, vítimas preferenciais do assédio, pelo menos estão cada vez mais bravamente se manifestando para deter essas mensagens que vêm do alto (mas não do além).

Josimar Melo - crítico de gastronomia, autor do “Guia Josimar”, sobre restaurantes, bares e serviços em São Paulo.

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