Música por música, as notas são as mesmas no disco
gravado, a edição é mais caprichada, a execução é impecável, e você ouve
quantas vezes quiser, onde quiser. Qual é, então, o apelo de um concerto ao
vivo de música clássica?
"Frisson do público empolgado" não pode
ser, porque, ao contrário da algazarra divertida e estridente do concertos de
rock, o público de concertos de música clássica costuma ser comportado a ponto
de ser imperceptível, mesmo ao ar livre. Qualquer tentativa de cantarolar junto
com a orquestra ganha olhares assassinos dos vizinhos.
Acho que a resposta está em como o cérebro processa
experiências e memórias não como registros dos sentidos em isolado, e, sim, um
registro unificado do amálgama de tudo o que acontecia no momento, do lado de fora
e de dentro do corpo.
Ontem, por exemplo, a orquestra sinfônica de
Nashville fez um concerto não só ao vivo como ao ar livre, e tocou dois dos
meus clássicos favoritos, o "Capricho Italiano" e a "Abertura
1812", ambos de Tchaikovsky. Conheço ambas peças de cor. Por que sair do
conforto da minha casinha para ouvi-las mais uma vez?
Porque agora eu tenho uma memória atualizada dessas
músicas, até então associadas apenas e respectivamente com ninar minha filha e
montar quebra-cabeças com meu filho na mesa de jantar ao som de canhões e
música, depois de lhe contar sobre a tirinha em que Calvin (o amigo do Haroldo)
descobre que música clássica também pode ser radical.
A atualização é cortesia do meu hipocampo, que
recebe em cópia e costura todas juntas as informações que meu córtex cerebral
recebeu ao mesmo tempo das músicas que eu adoro, do vento fresquinho no rosto,
do conforto da cadeira reclinável na grama, do prazer da companhia agradável,
da visão do rosto do maestro Giancarlo Guerrero em close no telão, valsando e
sorrindo deliciado de seu palanquinho diante da orquestra, depois tentando
reger uma plateia inteira de sacos de papel explodindo ao som dos canhões dos
russos afugentando as tropas de Napoleão (não funcionou, a plateia se rebelou e
produziu um tiroteio divertidamente desorganizado assim que o primeiro canhão
soou), e, por fim, o cheiro de pólvora no ar dos morteiros-canhões que logo se
transformaram em show de fogos de artifício digno de Réveillon.
Ouvir essas músicas novamente nos meus fones de
ouvido não chega aos pés da experiência ao vivo. Por outro lado, que bom que
serve para ajudar o hipocampo a puxar o fio da meada da memória, e, assim,
posso reviver o concerto mentalmente, quantas vezes quiser.
Suzana Herculano-Houzel - neurocientista, professora da UFRJ, autora do
livro "Pílulas de Neurociência para uma Vida Melhor" (ed. Sextante)
Fonte: www.suzanaherculanohouzel.com