Por que a música ao vivo é diferente?

Orquestra de Câmara de Viena, em 2015

Música por música, as notas são as mesmas no disco gravado, a edição é mais caprichada, a execução é impecável, e você ouve quantas vezes quiser, onde quiser. Qual é, então, o apelo de um concerto ao vivo de música clássica?

"Frisson do público empolgado" não pode ser, porque, ao contrário da algazarra divertida e estridente do concertos de rock, o público de concertos de música clássica costuma ser comportado a ponto de ser imperceptível, mesmo ao ar livre. Qualquer tentativa de cantarolar junto com a orquestra ganha olhares assassinos dos vizinhos.

Acho que a resposta está em como o cérebro processa experiências e memórias não como registros dos sentidos em isolado, e, sim, um registro unificado do amálgama de tudo o que acontecia no momento, do lado de fora e de dentro do corpo.

Ontem, por exemplo, a orquestra sinfônica de Nashville fez um concerto não só ao vivo como ao ar livre, e tocou dois dos meus clássicos favoritos, o "Capricho Italiano" e a "Abertura 1812", ambos de Tchaikovsky. Conheço ambas peças de cor. Por que sair do conforto da minha casinha para ouvi-las mais uma vez?

Porque agora eu tenho uma memória atualizada dessas músicas, até então associadas apenas e respectivamente com ninar minha filha e montar quebra-cabeças com meu filho na mesa de jantar ao som de canhões e música, depois de lhe contar sobre a tirinha em que Calvin (o amigo do Haroldo) descobre que música clássica também pode ser radical.

A atualização é cortesia do meu hipocampo, que recebe em cópia e costura todas juntas as informações que meu córtex cerebral recebeu ao mesmo tempo das músicas que eu adoro, do vento fresquinho no rosto, do conforto da cadeira reclinável na grama, do prazer da companhia agradável, da visão do rosto do maestro Giancarlo Guerrero em close no telão, valsando e sorrindo deliciado de seu palanquinho diante da orquestra, depois tentando reger uma plateia inteira de sacos de papel explodindo ao som dos canhões dos russos afugentando as tropas de Napoleão (não funcionou, a plateia se rebelou e produziu um tiroteio divertidamente desorganizado assim que o primeiro canhão soou), e, por fim, o cheiro de pólvora no ar dos morteiros-canhões que logo se transformaram em show de fogos de artifício digno de Réveillon.

Ouvir essas músicas novamente nos meus fones de ouvido não chega aos pés da experiência ao vivo. Por outro lado, que bom que serve para ajudar o hipocampo a puxar o fio da meada da memória, e, assim, posso reviver o concerto mentalmente, quantas vezes quiser.

Suzana Herculano-Houzel - neurocientista, professora da UFRJ, autora do livro "Pílulas de Neurociência para uma Vida Melhor" (ed. Sextante)

Fonte: www.suzanaherculanohouzel.com

 

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