Cena 1: O
governo precisa desesperadamente aquecer a economia. Injetar dinheiro novo é
uma maneira de movimentar o mercado. Vamos incentivar o consumidor a comprar,
comprar e comprar, utilizando dinheiro próprio ou emprestado, não importa
muito.
Cena 2: Os
bancos não gostaram nada de ver o risco de calote aumentar nas operações de
crédito para trabalhadores da iniciativa privada. Conceder empréstimo
consignado para funcionários públicos que têm estabilidade é uma coisa; para
alguém que pode perder o emprego, outra bem diferente. Problema dos bancos, faz
parte do risco do negócio bancário. Ou não?
Cena 3: O FGTS
tem um bocado de dinheiro. Bem que poderíamos aprovar uma medida provisória
permitindo que o trabalhador da iniciativa privada, esse que representa risco
para os bancos, utilize parte do saldo do FGTS e todo o valor da multa caso
seja demitido, como garantia de empréstimo consignado.
Bom para os bancos? Com
certeza, fácil emprestar dinheiro com uma garantia dessa. Bom para o governo e
economia? Talvez, depende de como o trabalhador vai usar o dinheiro. Bom para o
trabalhador? Não sei, tenho sérias dúvidas.
Cena 4: Os
trabalhadores serão incentivados a tomar mais empréstimo e comprometer ainda
mais sua renda. E, pior, isso será feito com o comprometimento de parte do
FGTS, uma reserva financeira destinada a proteger o trabalhador e não os bancos
ou a economia.
Eu não sei se a medida será
aprovada, em que contexto, nem como essa história vai terminar, mas prevejo que
a corda vá arrebentar do lado mais fraco. No curto prazo, a injeção de dinheiro
pode animar a economia e o governo dizer que adotou medidas vencedoras. O lucro
dos bancos aumenta pela concessão de crédito com baixo risco. O trabalhador
empregado estará mais endividado. O trabalhador desempregado, em palpos de
aranha. O crescimento econômico não se sustenta se o nível de consumo não é
mantido. Um círculo vicioso, e não virtuoso, pode estar sendo criado.
Aos governantes peço que se
preocupem, e muito, com os já combalidos cidadãos brasileiros.
Aos bancos incentivo que
concedam empréstimo a quem merece e comprova capacidade de pagamento,
independentemente de garantias generosas.
Ao FGTS convido revisitar a
vocação pela qual foi criado e limitar o uso dos recursos financeiros em prol
do trabalhador. Estimular a economia e proteger os bancos não é seu papel.
Ao trabalhador recomendo pensar
muito antes de contrair mais uma dívida, avaliar o impacto sobre sua renda e
sobre a reserva financeira destinada ao futuro, quando não tiver mais renda
para consumir e for capaz apenas de prover o seu sustento e de sua família.
Analisada isoladamente, sem
outras variáveis, essa história tem pouca chance de acabar bem.
Para aumentar as chances de um
final feliz, o governo poderia amarrar melhor as pontas, aprovando a medida com
duplo objetivo, o de estimular a economia, mas também educar financeiramente e
proteger o cidadão contra o consumo exagerado. Pensando alto, aqui com os meus
botões:
- Limitar o comprometimento da
renda mensal para pagar empréstimos de qualquer natureza, em torno de 20% da
renda do trabalhador. As autoridades estão indo exatamente no sentido
contrário, aumentando o limite e o prazo das operações de crédito;
- Liberar o recurso somente
para operações de crédito que ajudam a construir patrimônio, como a compra, a
construção ou a reforma de imóveis;
- Não conceder esse crédito
para quem já está inadimplente, ou aumentou o montante de dívidas no último
ano, ou voltou a ficar inadimplente depois de renegociar dívidas;
- Condicionar a liberação desse
crédito à quitação de operações mais caras, como os limites rotativos do cartão
de crédito e cheque especial, se houver.
Quem sou eu para ensinar o
padre nosso ao vigário, interferir ou dar palpites nas políticas públicas...
Sou apenas uma cidadã comum, que conhece um pouco o drama dos brasileiros
despreparados para lidar com suas finanças. E não me perdoaria se deixasse de
manifestar publicamente minha preocupação.
Marcia Dessen - planejadora financeira
pessoal, diretora do IBCPF (Instituto Brasileiro de Certificação de
Profissionais Financeiros) e autora do livro "Finanças Pessoais: o que
fazer com meu dinheiro" (Trevisan Editora, 2014).
Fonte:
coluna no jornal FSP