A arte de amar na bela velhice
Um simples telefonema pode contribuir para um envelhecimento mais
saudável, autônomo e feliz.
Você já ligou para os seus amigos e parentes mais velhos hoje?
"O marido
como capital" foi o título da minha primeira coluna para a Folha,
em 1/6/2010.
Minhas colunas eram quinzenais até que, em 20/3/2020,
enviei uma mensagem para Sérgio Dávila, Diretor de Redação da Folha,
dizendo que eu queria contribuir mais, com minhas pesquisas sobre
envelhecimento e felicidade, na luta contra a violência que os mais
velhos sofrem no Brasil.
Fiquei muito emocionada quando
vi na capa da Folha, de 2/4/2020, a chamada para minha coluna:
"Você já ligou para os seus amigos e parentes mais velhos hoje?".
"Mirian Goldenberg: Não se
esqueça de dizer ‘eu te amo’. Nesses tempos, um simples telefonema faz muita
diferença nas vidas dos mais velhos.
Eles precisam saber que são fundamentais
para nós e para a sociedade e merecem ouvir: ‘Eu te amo’. Mirian Goldenberg,
antropóloga e autora de ‘A Bela Velhice’ passa a escrever às quintas".
Do início da pandemia até hoje,
escrevi quase 200 colunas para a Folha, a grande maioria sobre a
violência física, verbal e psicológica, os abusos financeiros, preconceitos,
estigmas, humilhações, ofensas, xingamentos que os mais velhos sofrem dentro
das próprias casas e famílias.
Muitas colunas que escrevi —como "Estudantes que humilharam colega de 40
anos falam em brincadeiras, mas velhofobia é crime" (11/3/2023)—, tiveram
centenas de milhares de visualizações e entraram nas listas das notícias mais
lidas e comentadas da Folha.
Na minha primeira coluna
semanal, contei que, em uma das minhas noites de insônia, li um dos capítulos
do meu livro "A Bela Velhice" sobre a importância de encontrar um
projeto de vida para enfrentar os sofrimentos inevitáveis.
Foi, então, que resolvi me
dedicar à minha pesquisa sobre a importância da amizade e da autonomia para
construir uma "bela velhice".
Meu projeto de pesquisa de
pós-doutorado surgiu, em março de 2015, quando conheci, em um supermercado
perto da minha casa, um quarteto de amigos: Gete, Nalva, Canella e Guedes,
todos com mais de 90 anos.
Desde então, passei a dizer que tenho 93 anos, pois
minha maior alegria passou a ser estar junto com meus novos amigos.
Com a pandemia, não pudemos mais
nos encontrar no supermercado, ir ao cinema, ao teatro, a shows musicais, a
bares e restaurantes, como sempre fazíamos.
Foi assim que, desde o dia 15 de
março de 2020, Guedes, de 98 anos, passou a me telefonar todos os dias às
18h30.
Começamos a ler as 1.102
estrofes de "Os Lusíadas", de Camões, e a comentar trechos das
biografias que dei de presente para ele. Guedes se tornou invencível em um
joguinho de palavras que inventei para as nossas conversas diárias.
Só para dar
um exemplo, com a combinação das letras da palavra "pátria", ele fez
58 palavras: parati, pirata, pitara, raptai, partia, apitar, praia, prata,
apta, tapa etc.
Todos os dias, ele passou a
cantar para mim músicas dos anos 1940, 1950 e 1960. E, todos os dias, eu passei
a cantar para ele: "Como é grande o meu amor por você".
Guedes se tornou o melhor amigo
que eu já tive em toda a minha vida.
Quando eu me sinto sem forças para
participar de algum evento, ele me dá uma bronca carinhosa: "Tem que ter
coragem, Mirian. Coragem. Você vai sim!". E eu vou!
Não sei quantas vezes perguntei para o meu melhor amigo:
"Você sabe que é o amigo que eu mais amo nesse mundo?".
Nunca cansei de ouvir sua resposta: "Eu sei disso, minha
filha". "Tem certeza?", pergunto. E ele responde com firmeza:
"Absoluta!"
Aprendi, com Rubem Alves, a lição mais importante para a minha
"bela velhice".
"Amamos não a pessoa que fala bonito, mas a pessoa que
escuta bonito. A arte de amar e a arte de ouvir estão intimamente ligadas.
Não
é possível amar uma pessoa que não sabe ouvir. Os falantes que julgam que por
sua fala bonita serão amados são uns tolos. Estão condenados à solidão. Quem só
fala e não sabe ouvir é um chato."
Quando escuto as risadas gostosas do meu melhor amigo, junto com
"eu sei disso, minha filha, tenho certeza absoluta", eu sei que
encontrei o propósito da minha vida: "escutar bonito" os meus amigos
nonagenários.
Você já ligou para os seus amigos e parentes mais velhos hoje?
MIRIAN GOLDENBERG - antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, é autora de "A Invenção de uma Bela Velhice"