“Aranha diz que perdoa
gremista, mas nega revê-la.” A manchete do portal UOL Esporte, reproduzida com
pequenas variações formais por dezenas de veículos de mídia, atualiza um drama
sobre racismo que vem mobilizando a mídia e parcelas consideráveis da sociedade.
Em seu atual estágio, a novela, como se pode deduzir da manchete, acrescenta
doses de pieguice e lacrimosas emoções a uma temática que tem suscitado justa
revolta e mobilização social.
O caso, convém lembrar,
envolve uma torcedora do Grêmio Foot-Ball Portoalegrense flagrada imitando um
símio e chamando o goleiro Aranha, do Santos, de “macaco”. A mídia teve, desde
o início, mm papel determinante no episódio, não apenas porque os atos da
agressora foram captados com clareza pelas câmeras, mas na sua difusão, debate
e manutenção do interesse público, por vários dias.
Tema
quente
Em
grande parte graças à resposta multiplicadora das redes sociais, a repercussão
foi intensa e imediata. O fato de haver prova documental da prática do crime de
injúria racial indicava estarmos diante de um caso que poderia tornar-se
exemplar para o combate ao racismo no futebol brasileiro. A injúria racial,
tipificada no artigo 140, parágrafo 3 do Código Penal, difere do crime de
racismo, imprescritível e inafiançável, sendo cometida, segundo o jurista Celso
Delmanto, pelo “agente que utiliza palavras depreciativas referentes a raça,
cor, religião ou origem, com o intuito de ofender a honra subjetiva da vítima”
(Celso Delmanto e outros. Código Penal Comentado,
6ª ed., Renovar, p. 305;retirado daqui).
Trata-se de um tema que está
na ordem do dia, e não apenas em nosso país, mas em âmbito praticamente
mundial, com ocorrências similares em diversas partes do globo. De forma
recorrente, os campeonatos alemão, espanhol, inglês e italiano têm tido
problemas relativos à ação de torcedores racistas, e celebrizaram-se casos como
o de Mario Balotelli, atacante do Milan e da seleção italiana, e do
lateral-direito Daniel Alves (Barcelona), ambos repetidas vezes alvo de
racismo.
Cadeia
de repercussão
Nos
dias imediatamente posteriores ao ocorrido em Porto Alegre, com o eco persistente
nas redes sociais e a repetição ad nauseam das cenas da agressão a Aranha, a
repercussão manteve-se intensa. Um justo sentimento de indignação ante um ato
de discriminação baseado na cor da pele prevaleceu, engrossando o clamor por
punição exemplar da agressora e do grupo que com ela delinquira. Chegara a
hora: o caso da injúria filmada afigurava-se uma oportunidade única para
estabelecer limites, mandando um recado explícito de que não mais se toleraria
racismo nos estádios brasileiros.
Em meio a debates e
incitações, tanto a Justiça Desportiva mobilizava-se para julgar o caso,
criando a expectativa de que o clube seria de alguma forma punido, quanto o
injuriado Aranha registrava boletim de ocorrência em uma delegacia, de forma a
reforçar o caso contra a gremista e seus companheiros de agressão coletiva.
Fúria
da turba
Ocorre, porém, que o tempo da
Justiça – desportiva ou não – é, de ordinário, consideravelmente mais lento do
que o tempo da mídia; e esta, no afã de manter o interesse pelo caso, acabaria por
introduzir elementos que viriam a colaborar decisivamente para a produção de
resultados desastrosos – ainda mais por perfeitamente evitáveis –, incluindo
novas agressões e crimes.
Por exemplo: não havia razão
alguma – nem jornalística, nem de outra natureza – que justificasse a
divulgação de foto da casa onde a agressora mora, com menção ao bairro de Porto
Alegre em que está localizada, no que constituiu uma verdadeira senha para a
ação de turbas de vingadores. Com efeito, já no dia seguinte à divulgação, a
casa amanheceu pichada.
Por sorte, não ocorreu um
linchamento ou agressão à acusada e a seus pais, pois a família, já sufocada
pela pressão advinda da exploração incessante que a mídia fez do caso, e
pressentindo o pior, decidira refugiar-se temporariamente em endereço
desconhecido.
Ética
em xeque
Tais desdobramentos do caso
evidenciam que, sem nenhuma contemporização com o racismo e a transgressão da
lei, é obrigação ética da mídia distinguir entre um posicionamento que colabore
para a justa medida legal punitiva de atos racistas, se comprovados – no caso,
a incidir sobre a acusada, o grupo identificado de torcedores e/ou sobre o
clube – e outro incitador de atos de retaliação e difamação contra a ré, sua
integridade física e mental, sua família e seu patrimônio familiar, atos esses
que não raro significam, eles próprios, formas de violação da lei.
Não se trata, convém deixar
bem claro, de aliviar as culpas da acusada ou o ônus punitivo que a
transgressão da lei impõe, mas de impedir que, em nome de um sentido coletivo
de vingança, novos crimes sejam praticados, contra a ré ou contra quem for.
Esta, além de estar sendo processada por seus atos, já vem, aliás, arcando com
as reações sociais que sua atitude provocou, tendo sido dispensada do emprego
voluntário que exercia, tendo dificuldade para encontrar um advogado e sendo
ameaçada de estupro. É forçoso sublinhar que nenhum dos três últimos itens
pertence à esfera punitiva legal, sendo que o último tipifica crime.
Punição
exemplar
A Justiça Desportiva, por sua
vez, em uma decisão inédita e unânime (5x0), decidiu punir o Grêmio com sua
exclusão da Copa do Brasil. O histórico de ataques racistas da torcida do clube
– que inclui ação de um grupo neonazista – deve certamente ter contribuído para
a decisão. Já no dia em que ocorrera a agressão a Aranha posicionei-me entre os
que defenderam que se tomasse tal medida, a qual continua a me parecer a mais
adequada. Ela certamente desaponta a imensa maioria de torcedores que se
comportam de forma adequada, mas, em compensação, tende a servir como um forte
estímulo não só para que a diretoria do clube reprima com energia o racismo,
mas para que futuras manifestações racistas sejam coibidas no nascedouro e pela
própria torcida.
Mas mesmo no que concerne a
tal decisão, com o avançar do tempo as coisas se revelariam mais complexas: na
partida seguinte do Grêmio no Campeonato Brasileiro, no sábado (6/9) contra o
Flamengo, no Maracanã, a torcida do time carioca provocou a do adversário
chamando-a de racista. Alguns flamenguistas chegaram a se vestir de macacos –
outros imitaram o animal – numa forma inventiva, mas também polêmica, de
apropriar-se de signos racistas para denunciar o racismo.
Para
além do esporte
Toda essa polêmica em torno
do caso da agressão ao goleiro Aranha se dá em um momento em que não só no
futebol o racismo é, como já apontado, um tema na ordem do dia. Item
prioritário da agenda acadêmico-intelectual internacional desde a ascensão do
multiculturalismo, nos anos 1980, o debate em torno da questão racial tornou-se
corrente no Brasil ao menos desde a polêmica suscitada pela implementação de
cotas raciais nas universidades, no primeiro governo Lula. Trata-se, desde
então, de um tema cujo debate em torno dele se dá em um cenário conflagrado,
com posições e interesses e fortes e predefinidos.
A tal
respeito, em um artigo emblemático sobre a questão do imperialismo
cultural, os sociólogos Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant analisam o quanto, sob
os fluxos transnacionais da globalização, áreas como a acadêmica, a editorial e
o terceiro setor acabaram por forjar conceituações do racismo estranhas ao
ambiente sociocultural predominante no país de origem. Aos brasileiros a análise
interessa de forma particular por contrapor criticamente formulações clássicas
sobre racismo vigentes entre nós até o final do século 20 às modificações
trazidas pela influência do pensamento acadêmico e da militância do movimento
negro anglo-americanos.
Não
obstante a parcialidade crítica dos autores (ou justamente por ela), tal artigo
fornece pistas para melhor situar ideologicamente as principais tendências em
conflito no que se refere à temática do racismo, as quais abarcam desde o
movimento negro – tanto em sua vertente mais influenciada pelos race
studies e pela
militância ligada a parâmetros majoritariamente norte-americanos, quanto em sua
versão mais próxima de uma visão canônica e nacional do tema, que tem em Abdias
do Nascimento a figura-símbolo –, passando pelos setores da sociedade
simpatizantes ou engajados, em graus diversos, à luta antirracista, e incluindo
parcelas da sociedade que se ressentem do que entendem por aspectos normativos
ditados pelo corretismo político, que se lhes afigura eventualmente como
censura.
Questão
em aberto
A julgar pela caso Aranha e
pela reação aos casos públicos recentes de racismo, tem-se a impressão de que a
consciência quanto ao tema tem avançado de forma contundente no país, e que a
maioria condena com veemência tal prática. Por outro lado, pesquisa abrangente
feita em 2011 apurou que 63,7% dos cidadãos consideram que a raça interfere na
qualidade de vida do indivíduo – o que não deixa de ser, por si, uma premissa
racista, além de uma confirmação de sua permanência e capilaridade entre nós.
A
essa indefinição acerca do status do racismo entre os brasileiros soma-se, no
caso em questão, um problema inerente à mídia: a falta de profissionalismo e de
sobriedade por esta apresentada na cobertura do caso acabaria por propiciar um
clima de linchamento virtual coletivo o qual, por sua vez, instaura distorções
que atentam contra o primado exclusivo do Judiciário como locus de julgamento e eventual
punição. E são justamente essas distorções da mídia que impedem apurarmos, no
caso da agressão a Aranha, se as reações de repúdio à injúria se devem
majoritariamente a um suposto avanço da consciência contra o racismo, aludida
acima, ou se sua veemência e contundência – que, como vimos, transbordaram para
agressão à residência da acusada e à integridade física dela e de sua família –
derivam, em uma medida que não podemos precisar, do gosto popular pelo
escândalo e por vingança, açulado pelos excessos da cobertura do caso.
Mauricio Caleiro -
jornalista e doutor em Comunicação pela UFF.
Fonte: http://cinemaeoutrasartes.blogspot.com.br/