É condição
existencial do brasileiro saber que seus dados estão expostos.
'Vazamento do fim do mundo' continua a ser alimentado com novas
informações.
Na sexta-feira (3), a Folha e o UOL noticiaram que criminosos estão vendendo dados completos de praticamente
todos os brasileiros e brasileiras na internet. O serviço
funciona como uma espécie de Netflix.
O usuário paga uma assinatura mensal
de R$ 200 e, enquanto for assinante, pode ter acesso a bases de dados completas
e bem organizadas de qualquer pessoa.
Capilaridade e detalhamento são impressionantes.
Além de domicílio,
números de telefone celular, nome e dados completos dos parentes e vizinhos, ou
participações societárias, as bases reúnem ainda informações sobre renda,
análise de crédito e até mesmo dados do Sistema Nacional de Armas, operado pela
Polícia Federal. É possível saber, por exemplo, quem são as pessoas que têm
armas atreladas ao seu nome.
A novidade aqui não é o "vazamento do fim do mundo" em si.
Esse já aconteceu e continua a ser alimentado, já que novos dados chegam o
tempo todo para atualizar os antigos.
A novidade é que cada vez mais sites obscuros, sem identificação, surgem
para oferecer essas bases de dados organizadas e cobrar pelo seu acesso.
A
matéria-prima, os dados, está em toda parte. Ela é resultado de anos de negligência com relação à cibersegurança,
decisões equivocadas do poder público e vazamentos de dados de empresas
privadas.
A partir dessa matéria-prima, surge uma hidra de mil cabeças. O site
revelado pela Folha é apenas um dentre inúmeros outros que oferecem um tipo de acesso e organização dos
dados similar.
É até reducionista falar em "site". Isso porque os
canais para obter esses dados são múltiplos: seja nos aplicativos de mensagem,
seja nos grupos de redes sociais, e assim por diante. Se uma cabeça da hidra é
cortada, outras dez podem surgir.
O problema jurídico aqui tem duas características. Com relação a dados
públicos, que estão disponíveis online, chama a atenção o desvio de
finalidade.
A LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) permite
usos de dados públicos, mas os usos e serviços resultantes devem respeitar as
finalidades previstas para aqueles dados, além de assegurar os direitos dos
titulares previstos na LGPD. Isso não é feito por esses canais ilícitos.
A
maior parte deles oferecida por sites no exterior e sem nenhuma identificação.
O outro
problema é que há também bases privadas sendo oferecidas.
Com relação a essas,
são informações de uso restrito, que não deveriam ter ampla circulação. Nesse
caso, é muito provável ter havido vazamento ou acesso ilegal (o que na prática
dá no mesmo).
Esses casos ferem a LGPD.
Painéis online permitem
consultar de dados pessoais de brasileiros.
O que fazer? Primeiro, todo cidadão e cidadã tem de partir da
premissa hoje de que todos os seus dados estão expostos. Essa é uma condição
existencial de ser brasileiro. Isso requer cuidados e custos que caem nas
costas de cada pessoa.
Além disso, a situação toda é um alerta para que o país repense
sua estrutura de identificação. Como dados que vazam não têm como serem
"desvazados", que tal então repensar completamente o sistema de
identificação, de forma mais inclusiva e segura, e desburocratizando a vida das
pessoas? Seria um jeito de transformar o absurdo desse vazamento em um sistema
melhor para todos.
RONALDO LEMOS - advogado, diretor
do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro