Por
mais paradoxal que possa parecer, o medo pode ensinar a ser mais livre e feliz.
Antes da pandemia, eu estava escrevendo um livro sobre
os meus medos. No ano passado fiquei muito doente e, após consultar cinco
médicos, decidi que iria me curar sem tomar o antidepressivo que todos
recomendaram.
Como fiz mais de vinte anos de análise e li incontáveis
livros de psicologia e filosofia, descobri que todas as respostas para os meus
medos já estavam dentro de mim. E que escrevendo eu poderia colocar para fora os
demônios que me aprisionam.
Escrever sobre o medo foi catártico. Constatei que
nunca deixei de ser a mesma menininha magrinha e apavorada com as brigas,
surras e gritos que testemunhei em casa. A menina que escolheu ser invisível, e
se esconder dentro de um armário, para se proteger das agressões e violências
que sofreu. Até hoje sinto inveja das meninas que têm uma família amorosa e
protetora.
Com a pandemia, novos medos vieram para o primeiro plano
–
Com a pandemia, todos os medos que me deixaram doente
ficaram em segundo plano. Um medo muito maior se tornou protagonista. Medo de
morrer, medo de perder meus amigos, medo de não conseguir fazer nada de
relevante para as pessoas que eu amo.
O medo continua, muito forte, mas decidi enfrentá-lo de
frente. Estabeleci alguns propósitos e a minha prioridade hoje é cuidar dos
meus amigos nonagenários e combater a velhofobia no Brasil. Em mais de cinco
meses só precisei de remédio uma única vez. Em uma noite de insônia, quando
todos os fantasmas do passado surgiram e a lembrança das violências que sofri
provocaram uma ansiedade extrema, achei melhor tomar um calmante para controlar
o pânico.
Sei que nunca vou conseguir superar completamente os
medos infantis. No entanto, o fato de estar sentindo um pânico tão devastador
está me ensinando a compreender os meus medos mais profundos. E me ajudando a
ter a coragem de me libertar dos obstáculos que sempre me impediram de ser mais
livre e feliz.
O que o medo pode lhe ensinar?
Mirian
Goldenberg - antropóloga e professora da
Universidade Federal do Rio, é autora de "A Bela Velhice".
Fonte:
coluna jornal FSP