O que o Brasil quer da inteligência artificial?
Senado quer
aprovar regulação da IA neste mês, mas ainda não existe consenso sobre o tema.
O Senado anunciou que quer aprovar um
projeto de lei regulando a inteligência artificial até o final de
abril.
Essa afirmação é espantosa.
Não existe ainda consenso sobre o tema. Há
concordância com relação a seus problemas, mas ninguém sabe ao certo quais
remédios aplicar.
Nesse cenário incerto, fica claro que a sociedade deveria
estar mais próxima do desafio de regular a inteligência artificial.
Para começar, o projeto em análise no Senado tem um
problema fundamental. Ele se inspira no modelo legislativo desenvolvido na
Europa, o chamado AI Act (Lei de Inteligência Artificial de lá).
O que é bom
para Europa é bom para o Brasil? Isso pressupõe que o
remédio lá criado funcionaria aqui.
Há quem diga que, por não conseguir
exportar tecnologia, a região passou então a exportar
legislação sobre tecnologia.
Outro problema é que a sociedade está até agora
fora do debate regulatório. Os diversos setores econômicos, a academia, a sociedade civil ou a
comunidade científica e as pessoas em geral não puderam ainda contribuir para o
texto.
As consultas realizadas não foram suficientes. Na redação dos textos
finais predomina a caneta dos advogados.
Vale lembrar que a lei europeia de IA nem sequer
foi testada, já que começa a vigorar na sua totalidade só em 2026. Se o Senado
votar uma lei parecida com ela, teremos um curioso caso de importação
premonitória: a adoção de uma lei cujos efeitos são desconhecidos até mesmo no
seu lugar de origem.
Para
regular a inteligência artificial é preciso antes responder: "O que o
Brasil quer da inteligência artificial?". Toda a regulamentação deve ser
feita a partir da resposta a essa pergunta.
E a resposta deve vir da sociedade.
Somente por meio de uma participação ampla conseguiremos lidar com a
complexidade da inteligência artificial, já que ela afeta a vida de todos nós.
O
Brasil certamente quer proteção quanto aos problemas que a IA pode trazer. Por
isso, o Tribunal Superior Eleitoral já regulamentou o ponto mais urgente: o
impacto da IA sobre as eleições de 2024, incluindo as deepfakes.
Ao resolver
esse ponto de ação imediata, o TSE nos deu o tempo necessário para tratar dos
outros temas estruturantes, incluindo a estratégia e a competitividade do país
em face da IA.
Além disso, o Tribunal de Contas da União publicou na
sexta um importante relatório em que critica duramente o projeto de lei em
curso no Senado.
Nas palavras do TCU: "O projeto enfatiza aspecto
temerário quanto à IA no país, em detrimento da adoção de diretrizes capazes de
promover o desenvolvimento responsável da tecnologia.
A regulação desproporcional
pode acarretar o gasto excessivo de tempo e dinheiro para o cumprimento de
regras complexas, em vez de promover o investimento em desenvolvimento
tecnológico".ntos a serem ponderados com calma. Não há pressa que se
justifique neste momento.
Será
uma decepção se o caminho para regulamentar a IA entre nós for derivado de um
modelo feito alhures. Será também decepcionante se a sociedade não participar
de verdade desse processo.
Vale lembrar que a própria lei europeia precisou de
quatro anos para ser feita, auxiliada por vários comitês da sociedade.
Os EUA
estão com ampla consulta pública para regular o tema. Taiwan criou um ambicioso
processo para ouvir toda a população para regular a IA.
O Brasil também já fez
isso com o Marco Civil. Está na hora de a sociedade retomar o seu papel na
regulamentação deste que é um dos temas mais importantes do presente.
RONALDO LEMOS - advogado, diretor do
Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.