Ideia
de garantia da ligação entre mãe e bebê só gera expectativas insustentáveis
Futura mãe acaricia barriga de grávida –
Entre os produtos disponíveis no mercado da
parentalidade —novo esporte olímpico para pais amadores— tem estado em alta o
“vínculo”. Como fazer, como obter e, acima de tudo, como garantir o vínculo
entre mãe e bebê desde a gestação —a pergunta de um milhão de dólares.
Garantia é uma palavra mágica que assombra a humanidade,
que só tem garantido o fato de que morrerá. Tendo a morte no horizonte, ao
invés de escutarmos a sábia filosofia “zecapagodiniana” do “deixa a vida me
levar”, seguimos tentando controlar nossa existência. Não só não conseguimos
controlar nada como a busca desenfreada por controle é inversamente
proporcional a nossa capacidade de nos deixar surpreender e nos encantar com a
vida. Resta o uso de qualquer “veneno antimonotonia”, como dizia Cazuza, para
tentar sentir algum descontrole que produza prazer.
Mas voltemos à prateleira na qual encontramos o tão
sonhado vínculo mãe-pai-bebê, espécie de Super-Bonder cuja aquisição promoveria
o amor sem ambivalência, a fácil comunicação entre gerações, evitaria a birra
aos dois anos, o uso de drogas na adolescência e ainda promoveria a paz
mundial.
Martelada, exigida e medida desde a gestação (já
conversou com sua barriga hoje?) a ideia de profilaxia e garantia do vínculo
presta-se a expectativas insustentáveis.
Digamos que você marcou um encontro com uma pessoa
que você gostaria de conhecer, mas de quem só sabe algumas
informações esparsas —sexo, idade, uma foto em preto branco borrada,
talvez uma colorida, ultra desfocada. Você está ávido por conhecê-la, sempre
quis ter alguém assim ao seu lado, mas não tem a menor chance de saber quem é
antes da data marcada para o encontro.
Que vínculo é possível fazer com esse estranho? O
vínculo possível aqui é o que fazemos com nossa fantasia, com nossas
projeções, enfim, com a gente mesmo. Eu e meu umbigo, cheios de amor
por... mim mesmo! Processo mais narcisista impossível. E tudo bem, é assim
mesmo que funciona.
Mas eis que chega o outro, e ainda que seja melhor que
as expectativas, ele nos obriga a uma retificação, a um estranhamento e, aí
sim, à possibilidade do começo de uma relação intensa e delicada que, no caso
do bebê, não é livre de certo luto. Se você continuar a ver no recém-nascido
algo idêntico ao sonhado, sem diferenças, trata-se de um delírio
psicótico.
Seres humanos vêm de fábrica com grande sensibilidade às
gracinhas dos bebês, cuja aparência gratifica nosso cérebro, recurso da espécie
que aumenta —mas não garante— as chances de que nos apaixonemos por ele —fato
sabido pelos profissionais da propaganda, que colocam bebês até em anúncio de
tônico capilar. Quando nos apaixonamos pelo recém-nascido, nos apaixonamos por
esse impostor que se colocou no lugar do bebê sonhado.
Deixemos
os pais e mães estranharem e curtirem seus filhos longe de palpites infelizes e
torçamos para que desse convívio, o amor advenha. Se queremos mesmo promover o
vínculo, cabe pensarmos formas coletivas de dar apoio aos pais e mães, como
licenças parentais suficientes, creches e subsídios que os deixem menos
desamparados socialmente. Qualquer lua de mel que se preze precisa do mínimo de
tranquilidade para rolar. É nesse âmbito que devemos focar nossos esforços.
Vera
Iaconelli - psicanalista, fala sobre
relações entre pais e filhos, as mudanças de costumes e as novas famílias do
século 21.
Fonte:
coluna jornal FSP