Se
o país não enxergar a necessidade de investir em ciência permanecerá
no passado
Num momento político extremamente difícil para o Brasil,
em que a divisão de opiniões que sempre existiu torna-se mais clara do que
nunca, e a sociedade parece rachar ao meio, perdida em ataques e defesas,
ofereço alguns momentos de trégua, entregues a uma reflexão que transcende a
crise atual.
A situação me lembra um pouco o que ocorria na Grécia
antiga, em torno de 404 a.C., quando a Guerra do Peloponeso terminou e Atenas
finalmente se rendeu a Esparta. Em meio ao enorme tumulto político, a atenção
das pessoas voltou-se para ideias mais abstratas, que existem numa realidade
além da volatilidade destrutiva dos homens.
Jovens
observam pesquisadora fazer teste em laboratório –
Esta foi a época de Platão, que elevou o pensamento para
o mundo da abstração matemática, o único onde, segundo ele, a verdade pode ser
encontrada.
No nosso caso, o Brasil de 2018, não é nas ideias
abstratas que podemos encontrar um respaldo para o que está ocorrendo. O país,
que quando eu era menino já era chamado de “o país do futuro”, ainda não
encontrou o seu, preso a estruturas históricas que se negam a ceder a vez para
o amanhã. O Brasil, a meu ver, enquanto insistir em ser apenas uma economia de
extração, baseada na mineração e na agropecuária, não vai sair do buraco
existencial em que se encontra há décadas. Há espaço para muito mais.
Basta olhar para os países que estão alavancando o mundo,
que estão, essencialmente, reinventando a sociedade moderna —a Coreia, o Japão,
a China, os EUA, a Alemanha— para ver que apenas investindo na ciência e
na tecnologia as coisas podem mudar. O desafio é como fazer isso, fora,
obviamente, eleger um governo que entenda essa questão e
invista solidamente no desenvolvimento da ciência e da tecnologia.
As pessoas —especialmente os mais jovens, estudantes decidindo ainda qual
carreira seguir— me perguntam com frequência porque resolvi ser cientista.
O que vejo, e tenho certeza que muitos de meus colegas confirmariam isso, é que
a vasta maioria das crianças, adolescentes, e jovens adultos não têm a menor
ideia do que significa ser cientista, de como seguir a carreira, ou o que
fazemos nas nossas diferentes especialidades. Arrisco dizer que, no Brasil,
menos de 5% da população pode citar o nome de três cientistas brasileiros
vivos. (Ou mesmo um ou dois.)
O primeiro obstáculo é a invisibilidade. Se ninguém
conhece um cientista de carne e osso, e a única referência que se tem é em
filmes e shows de TV importados, fica mesmo difícil contemplar a possibilidade
de uma carreira científica. Diferentemente de médicos, dentistas, professores,
policiais, advogados e engenheiros, profissões que são parte das nossas vidas,
os cientistas parecem viver numa realidade paralela, invisível ao resto da
sociedade.
Quando um jovem imagina um cientista, provavelmente é
como um dos personagens da série "Big Bang Theory", todos
supernerds, socialmente ineptos e adoráveis; ou o Einstein pondo a língua de
fora; ou um professor de química que desenvolve drogas de alta qualidade.
A solução, aqui, é obviamente dar maior visibilidade à
ciência. Por exemplo, incentivar cientistas a visitar escolas públicas e
privadas, incluindo estudantes de pós-graduação, uma ideia que dei ao senador
Cristovam Buarque anos atrás, e que ele ainda luta para transformar em lei.
Numa mensagem dele que recebi sobre o assunto, de maio de 2015, pedia que
escrevesse ao senador Romário sobre o assunto.
Perguntei nesta semana, e o que o senador me disse
foi desalentador: “Criaram todas as dificuldades possíveis, um dia contarei.
Agora estão contra já na Câmara de Deputados porque exigem ficar claro que não
vai implicar gastos. Estou preparando uma emenda dizendo isto.” Ou seja, gastar
na divulgação da ciência é algo de impensável; tudo deve ser feito de graça, e
os resultados devem ser um milagre. Enquanto isso, anos se passaram e nada
ocorreu, apesar dos esforços do senador e sua equipe.
A ideia é simples: estudantes contariam aos alunos o que
fazem em suas pesquisas, como fazem e porque o fazem. Seminários rápidos de
treinamento de como falar informalmente em público, incluindo técnicas básicas
de pedagogia seria oferecidos por mentores mais experientes. (Obviamente, em
caráter voluntário.) Aliás, não há porque não incluir cientistas mais
estabelecidos nesta iniciativa. Uma atividade simples de divulgação científica
deveria ser condição do ganho de bolsas do governo, como a Nasa e a
Fundação Nacional de Ciência fazem nos EUA.
O segundo obstáculo é o estigma de que cientistas são
nerds. Muita gente acredita nisso, uma completa bobagem. Existem, sem dúvida,
cientistas que são nerds. Mas existem muitos que não são, exatamente como
médicos num hospital, ou advogados e engenheiros. Existem cientistas atletas,
surfistas, motoqueiros, músicos de rock, enfim, representando todo o espectro
da sociedade. Religiosos, ateus, liberais e conservadores. Quando o assunto é
pessoas e suas escolhas, generalizações de qualquer tipo são uma forma muito
pobre de descrição.
Gostar de matemática, de pensar, de estudar, jamais
deveria ser equiparado a uma fraqueza de caráter. Muito pelo contrário, deveria
ser celebrado como o que leva a um futuro melhor.
O terceiro obstáculo é a motivação. Por que ser
cientista? Essa é a mais difícil. A primeira razão, e essa é uma opinião
pessoal, é que a ciência é um contrato com a natureza, expressão da paixão que
temos pelos seus mistérios.
Essa visão, sem dúvida romântica para muitos cientistas,
é essencial para muitos outros: fazemos ciência porque nenhuma outra profissão
nos permite dedicar uma vida inteira a entender como o mundo funciona e qual o
nosso lugar nele. Mesmo que a contribuição de cada cientista seja, na maioria
dos casos, pequena, o que importa é fazer parte desse processo de descoberta.
Às vezes, conseguimos desvendar algo sobre o mundo pela primeira vez, abrindo
uma janela inesperada para a realidade que nos cerca.
Obviamente, existe o lado utilitário da ciência,
extremamente importante e transformador. Fazemos ciência para descobrir e
inventar o novo, para melhorar a qualidade de vida das pessoas, para criar
produtos e tecnologias que movem a economia e que definem, em grande parte,
como vivemos nossas vidas. (TV, ar condicionado, celulares, computadores,
internet, wifi, carros e aviões econômicos e mais seguros, antibióticos e
vacinas, GPS, de onde vem isso tudo?)
Mas dado que o caminho profissional é longo, comparável
ao de um médico, com graduação e pós, apenas a paixão pela descoberta pode
servir de combustível ao indivíduo.
Num mundo onde o significado do que é verdade é
constantemente ameaçado, nenhum antídoto é mais eficaz do que a transparência
da metodologia científica.
No meu caso, sou cientista porque não consigo me
imaginar seguindo outra profissão. Considero um privilégio poder dedicar minha
vida aos mistérios da natureza e a difundir esse conhecimento todo que temos do
mundo.
Quando
era novo, meu pai queria que fosse engenheiro. Dizia que o Brasil precisava
deles. Acabei, contra seu desejo, seguindo minha paixão. Meu pai tinha razão. O
Brasil precisa, sim, de engenheiros. E de cientistas inspirados pelo espírito
de inovação tecnológica que está transformando o mundo. Se o Brasil não
enxergar isso e mudar sua política científica, estará fadado a permanecer
ancorado no passado, com a sociedade dividida entre olhar para frente e olhar
para trás. Certamente, não é este o país do futuro.
Marcelo
Gleiser - físico,
astrônomo, professor, escritor e roteirista brasileiro, atualmente pesquisador
da Faculdade de Dartmouth, nos Estados Unidos.
Fonte:
coluna jornal FSP