Em
tempos de retrocesso com relação a tantas questões humanas, é fácil cair na
tentação do "solucionismo" tecnológico. O termo foi cunhado pelo
escritor bielorrusso Evgeny Morozov no livro "Para Salvar Tudo, Clique
Aqui". Refere-se ao desejo irracional de acreditar que a tecnologia pode
servir de panaceia para problemas que instituições falharam em resolver.
Um
exemplo de solucionismo gerou polêmica na semana passada. O jornalista
norte-americano Shane Snow publicou um artigo propondo resolver o problema das
prisões nos EUA, onde um preso custa até US$ 60 mil por ano (mais que a renda
anual de boa parte da população). Ele sugeriu um "experimento
mental": em vez de encarceramento, os presos deveriam ser mantidos em um
sistema de realidade virtual. Todo o contato humano deveria ser substituído por
interações puramente virtuais. Isso eliminaria a violência nas prisões.
Além
disso, a comida deveria ser substituída por Soylent. Trata-se de um pó
alimentar (parecido com uma farinha láctea) que alega ter todos os nutrientes
necessários. O produto tem entre seu público-alvo jogadores de videogame que
preferem pular as refeições a abandonar o jogo. Como Soylent é mais barato do
que comida usual, a ideia de Snow é que os presos fossem alimentados apenas com
o produto.
São
ideias tão absurdas que levam a crer que Snow não fala sério. O artigo poderia
ser pegadinha tardia de 1º de Abril ou proposta de argumento para um seriado de
terror como "Black Mirror", especializado em distopias tecnológicas.
Seja o que for, o professor do MIT Ethan Zuckermann dispôs-se a escrever um
ensaio respondendo a essas propostas, com o sugestivo título "A Pior Coisa
que Li neste Ano e o que Aprendi com Ela".
Ethan
lembra que as propostas acima são condenáveis por muitas razões. Além de
violarem direitos humanos, não há estudos sobre os efeitos da exposição
prolongada à realidade virtual nem ao Soylent.
Ao
contrário, o isolamento prolongado do contato com outras pessoas provoca
ansiedade, pânico, paranoia e violência. E o problema principal: o
"solucionimo" tecnológico trata apenas de efeitos, sem cuidar das
causas. O problema nos EUA não é só a vida carcerária. É o fato de o país
possuir a maior população carcerária do planeta (25% dos presos do mundo estão
nos EUA). O que a tecnologia pode fazer para diminuir prisões em massa? Isso o
artigo de Snow não diz.
Eis
meus dois centavos nessa discussão: há um outro roteiro de seriado de terror
nessa história. Em um mundo que incentiva o indivíduo a consumir mídia de forma
cada vez mais intensa, a toda hora e lugar, os sintomas que Zuckermann teme nas
prisões (alienação, ansiedade, paranoia) estão cada vez mais presentes do lado
de "fora" delas. Talvez no futuro haja presos que, ao serem libertos,
surpreendam-se com a quantidade de pessoas conectadas a dispositivos de
realidade virtual e se alimentando de Soylent.
Ronaldo Lemos - advogado e diretor do Instituto
de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.
Fonte: coluna no jornal FSP