Você avisa o ente querido diariamente
que ele tem alzheimer ou aceita que o melhor é limitar o sofrimento a você?
Quanto
mais eu convivo com o pessoal do outro lado do mundo, mais me dou conta de que
brasileiros e chineses são muito parecidos.
Vivemos em família, falamos todos
ao mesmo tempo, cuidamos uns dos outros porque achamos perfeitamente normal que
os outros precisem da gente — porque, afinal, antes de nos tornarmos
indivíduos, somos parte de um todo que cuida de nós.
O
que acontece, então, quando a mente de alguém querido adoece?
Nos EUA, descobri
que só se pode buscar cuidado médico para familiares quando o cuidado requer
ambulância ou polícia.
Antes disso, entrar em contato com o médico é violação
de privacidade.
Obviamente
não é o caso na China, ou a premissa do filme “The Farewell”, da chinesa Lulu Wang, seria inviável.
No filme, uma família
descobre que a matriarca, velhinha, tem câncer de pulmão terminal, mantém a
doença em segredo da própria paciente e se reúne para celebrá-la em vida, sob
pretexto de uma festa de casamento.
Não há papo sobre autorizações ou
consentimento: o médico conversa com a família e ela decide o que fazer.
Enquanto isso, a paciente vive sua vida, sem se estressar com a tosse ocasional
e contente de ter a família ao redor, distribuindo conselhos.
Não
estou apoiando nem criticando a história. Especialmente em tempos de polarização,
acho importante lembrar que as coisas são mais complicadas, que há tons de
cinza, e reservar a cada um e sua família o direito de decidir por si mesmo.
Se a
situação médica de “The Farewell” seria impensável nos EUA por causa da
legislação que busca proteger médicos de litígio, ainda assim a vida garante
complexidade para todo mundo.
Exemplo: com a expectativa de vida pra lá de 80
anos, é inevitável que o mal de Alzheimer se faça cada vez mais presente.
O
problema é que são os outros que notam essa doença e sofrem primeiro; o doente
pode passar o resto de seus dias sem se saber doente.
Por isso, cada vez mais
cuidadores advogam por aplicar as técnicas teatrais do improviso: entrar no
jogo, não contrariar e jamais dizer “você já me perguntou isso três vezes”.
Sem
memória recente, a pessoa querida com alzheimer vai perguntar a mesma coisa
três vezes, repetir o mesmo comentário sincero, perguntar pelo Fulano, que já
morreu, e achar estranho que o cachorro esteja borocoxô, comportando-se como um
velhinho.
E
aí, você lhe dá todos os dias a notícia de que ela tem alzheimer?
Ou aceita que
o melhor é limitar o sofrimento a você?
Com sorte, o que quer que você diga
terá sido esquecido no dia seguinte.
Antes de decretar que isso ou aquilo é
antiético, que tal se perguntar: para quem faz diferença?
Suzana Herculano-Houzel - bióloga e neurocientista da Universidade
Vanderbilt (EUA)