O sentimento em relação ao
Brasil no exterior mudou em 2013. O otimismo no País já vinha em queda há algum
tempo, mas a percepção externa parece ter finalmente alcançado - e até mesmo
ultrapassado - o recente desalento doméstico. A evidente deterioração da
situação fiscal brasileira - apesar do uso de todo tipo de manobras contábeis para
impedir que a extensão da piora fique clara - é o fator mais preocupante para
analistas e investidores estrangeiros. A queda do superávit primário se
refletiu num aumento do prêmio de risco, medido pelo seguro financeiro contra a
probabilidade de calote - os chamados CDS - da dívida brasileira.
A alta do prêmio de risco, se
entendido como a probabilidade de o país vir a ter problema de solvência com
sua dívida pública, como ocorreu no passado recente, parece-me despropositado.
A dívida em moeda estrangeira, especialmente a dívida pública, é pequena, não
passa de 5% do PIB. Mesmo a dívida bruta total, que os truques contábeis têm
menos capacidade de maquiar, está entorno de 60% do PIB. É alta, mas está longe
de ser preocupante. O prêmio de risco reflete um desconforto mais difuso sobre
o futuro do país. Os problemas são muitos, a grande maioria deles não é nova,
mas há uma dimensão especialmente grave no atual quadro brasileiro: um Estado
despreparado, patrimonialista, com objetivos próprios, dissociados da
sociedade.
Desde a estabilidade
monetária, o país vinha fazendo avanços sistemáticos na ordenação das finanças
públicas. A carga fiscal passou de 25% para 36% do PIB e a dívida pública
estava em queda. O processo foi revertido a partir de 2008. É preocupante, mas
o problema do Estado brasileiro, hoje, não é de solvência, nem de descontrole
macroeconômico, que poderia ser revertido, mas o fato de atuar contra a
sociedade, a favor de seus interesses próprios. O custo do Estado está hoje
perto de 40% da renda anual, equivalente aos mais altos do mundo, mas seu
desempenho é abaixo da crítica.
O papel do Estado sempre foi
um tema polêmico. Durante o século 20, tomou contornos ideológicos tão
demarcados que praticamente inviabilizou o debate sereno e reacional. Parece
inevitável que sociedades maiores e mais complexas sejam mais difíceis de ser
administradas, exijam mais das empresas, das instituições e também do Estado.
Há uma inexorável correlação entre tamanho e complexidades em toda empreitada
humana. O mundo está superpovoado e definitivamente interligado pelo avanço das
comunicações e da informática. A questão da escala e da complexidade está em
toda parte, mas é ainda mais grave onde é menos reconhecido: na esfera da vida
pública. As sociedades modernas se sofisticaram, tornaram-se mais complexas. O
Estado foi obrigado a crescer para atender às suas novas funções.
Em livro de 2011, Vito Tanzii
faz uma isenta e ponderada análise do inexorável avanço do Estado sobre todas
as esferas da vida. O peso do Estado cresceu sistematicamente em toda parte do
mundo. A proporção da renda extraída da sociedade pelo Estado, que era
geralmente inferior a 10% no início do século 20, dobrou lá pela metade do
século, até atingir mais de 40%, neste início de século 21. O avanço foi
sistemático, sobretudo a partir da década de 30.
Quando se exige mais do
Estado, é razoável que o seu custo suba, mas espera-se que haja alguma
correlação entre o custo e o serviço prestado, entre o custo e a qualidade do
Estado. Não foi o que ocorreu no Brasil. Ao contrário, a rápida elevação
recente da fatia da renda extraída da sociedade não foi acompanhada pelo
investimento em infraestrutura. Houve séria deterioração da segurança pública e
um dramático aumento da criminalidade. Não houve melhora digna de nota nem na
educação, nem na saúde. O saneamento e o transporte público continuam abaixo da
crítica.
Notícias recentes indicam que
mais de 20% das pessoas - até 50% em alguns Estados - dizem terem sido vítimas
de assaltos nos últimos doze meses. O nível de compreensão da língua e da
matemática dos alunos brasileiros, segundo resultados recém-divulgados do PISA,
exame de avaliação internacional de estudantes conduzido pela OCDE, é
deplorável. O Brasil continua entre os últimos colocados, junto com a Albânia,
a Tunísia e a Jordânia, muito abaixo do Chile e do México.
O World Economic Forum
publica anualmente um índice global de competitividade. O Brasil caiu para o
56.º lugar este ano. Ocupa o 80.º lugar em relação ao funcionamento das
instituições e a 124.ª posição em relação à eficiência do governo. A educação
está na 121.ª posição e a confiança nos políticos, na 136.ª. Os bolsões de
excelência tecnológica e a qualidade do empresariado ocupam a 36.ª e a 39.ª
posições. As estatísticas e os rankings apenas confirmam uma realidade
perceptível a olho nu: o Estado brasileiro não está à altura do estágio de
desenvolvimento do País.
A herança patrimonialista,
misturada aos desafios de um país grande e desigual, a meio caminho para o
mundo desenvolvido, criou um Estado caro, ineficiente e, sobretudo,
disfuncional. Um Estado cujo único objetivo é viabilizar a expansão de seu
poder e de suas áreas de influência. Um Estado que cria uma regulamentação
kafkiana, com exigências burocráticas cartoriais absurdas, cujo resultado é
aumentar custos, reduzir a produtividade e complicar todas as esferas da vida.
O patrimonialismo do Estado brasileiro, sua incapacidade de respeitar os
limites e os deveres em relação à sociedade, tem longa tradição, mas toma novos
contornos com a sofisticação da economia, com a chegada do País à sociedade do
espetáculo e à democracia de massas. O uso e o abuso das técnicas
publicitárias, a criação de dificuldades de toda ordem para a venda de
facilidades, a simbiose com cultura dos direitos especiais adquiridos e a
aliança com grupos econômicos selecionados são a nova face do velho
patrimonialismo.
Crítica. Diante
da polarização do debate, a crítica ao patrimonialismo do Estado tende a ser
desqualificada como uma reação conservadora aos avanços da cidadania. Cada uma
das dimensões do progresso da cidadania - a civil, a política e a social -
enfrentou, a seu tempo, fortes reações ideológicas. O século 18 foi palco da
luta pela cidadania civil, pelos direitos de opinião, de expressão e à justiça.
No século 19, avançaram os aspectos políticos da cidadania, o direito ao voto e
de participação política. Finalmente, no século 20, sobretudo a partir da
década de 30, houve o avanço da dimensão social, com a criação dos sistemas de
assistência e previdência, de educação e de saúde pública, capazes de garantir
um padrão de vida mínimo para o exercício das demais dimensões da cidadania.
Adotado depois da grande
crise do capitalismo do início dos anos 30 do século 20, o Estado
Assistencialista foi uma forma de aliviar as pressões sociais e o apelo do
comunismo marxista, mas nunca deixou de enfrentar resistência. Resistência que
encontrou na teoria econômica um poderoso aliado. A economia sempre teve um de
seus pilares na tese de que os mercados competitivos tendem ao equilíbrio
eficiente. O mercado competitivo é uma construção intelectual, uma referência
importante para a alocação eficiente de recursos, mas a polarização ideológica
levou a uma inferência indevida: a de que toda interferência governamental
sobre o livre mercado seria contraproducente.
Com a vitória incontestável
dos direitos sociais, a teoria econômica paga até hoje o preço político de ser
percebida como intrinsecamente conservadora. Toda crítica à falta de critérios
e à ineficiência do gasto público, sobretudo se embalado como gasto social, é
tachada de reacionária e desconsiderada. No Brasil de hoje, o velho
patrimonialismo do Estado se esconde por trás do assistencialismo. O
patrimonialismo indefensável reveste-se de assistencialismo inatacável. Desde
que sob o guarda-chuva de gasto social, toda sorte de abuso patrimonialista não
admite questionamento.
A divisão do trabalho, o
comércio internacional e os mercados são poderosos estímulos à criação de
riqueza, mas dependem de leis, instituições e do Estado inteligentemente
organizado. A complexidade do mundo contemporâneo exige do Estado ainda mais do
que suas funções clássicas. As modernas sociedades democráticas requerem,
necessariamente, algum tipo de assistencialismo distributivista, o que exige a
coordenação do Estado. O desafio é ter um Estado competente, que contribua para
uma sociedade melhor e cujos serviços justifiquem seu custo.
Um seminário recente, em
Viena, em homenagem a Peter Drucker, reuniu expoentes da administração para
discutir o tema da complexidade no mundo contemporâneo. Concordaram que a
gestão dos negócios está mais complicada do que jamais foi e que a capacidade
de lidar com a complexidade é prioridade na agenda dos empresários. Como em
todas as outras esferas da vida contemporânea, os homens de negócios são
confrontados com muito mais de tudo a todo tempo.
Duas linhas alternativas de
interpretação se delinearam. A primeira é de que é preciso simplificar,
concentrar em alguns poucos objetivos, dar às empresas um foco e uma direção
para os que nela trabalham, ainda que por imposição, de cima para baixo. A
segunda interpretação sustenta que a maior complexidade é apenas uma nova
ordem, que exige a revisão do modo de se administrar. A revolução das
comunicações e da informática tornou obsoleta a administração linear, de
comando e controle, que deve ser substituída por uma nova, baseada em redes
espontâneas de módulos autônomos. O mundo contemporâneo é não linear e as
empresas, assim como as demais instituições, ainda não se adaptaram a essa não
linearidade. O caminho a ser seguido é reconhecer a nova ordem e não insistir
na tradicional gestão de comando e controle, pois é a imposição de um estilo
anacrônico de gestão que é contraproducente na complexidade contemporânea.
As duas interpretações
exprimem as alternativas para se lidar com a complexidade contemporânea, não
apenas na vida empresarial, mas também na vida pública. A opção por
simplificar, ainda que de cima para baixo, por concentrar em alguns objetivos
claros e dar uma direção para o país, tem enorme apelo diante das dificuldades
da democracia representativa. O encanto provocado pelo novo capitalismo de
estado chinês é exemplo do apelo da simplificação autoritária. Como demonstrou
a experiência soviética, é sempre possível acelerar o crescimento por meio da
mobilização centralizada de poupança e do investimento estatal, com base em
grandes planos, formulados a partir de um "projeto nacional" definido
pelo Estado. A estratégia demonstrou ser bem-sucedida para as economias de baixa
renda, onde as taxas de poupança e investimento são limitadas pelas
necessidades básicas de consumo. Enquanto se percorre caminhos tecnológicos
conhecidos, é possível acelerar autoritariamente o crescimento, mas quando a
economia se aproxima da fronteira tecnológica, a estratégia do planejamento
estatal deixa de obter resultados.
Tendo aprendido as lições do
fracasso do planejamento central soviético, o capitalismo de estado chinês
compreendeu que não poderia prescindir dos mercados. Usa as companhias estatais
para garantir investimentos nos setores considerados estratégicos e utiliza
empresas privadas escolhidas para dominar os mercados. Os resultados foram
extraordinários, mas as tensões e desafios têm aumentado. Embora a China tenha
dado sinais de que pode vir a aumentar o papel dos mercados, é pouco provável
que a flexibilização mude a essência do modelo. Seu objetivo é manter o poder
político concentrado na mão do Estado e a maximizar a probabilidade de
perpetuação do governo.
Há uma diferença fundamental
entre o Brasil e a China. A China tem uma tradição milenar de autoritarismo
burocrático competente. O custo do Estado é menos de 30% renda e está em queda.
Já a participação do Estado no investimento, na chamada formação bruta de
capital fixo, é de 21% do PIB. Ou seja, só o investimento direto do Estado
chinês é uma proporção maior da renda nacional do que todo o investimento
brasileiro, público, privado e estrangeiro, que não chega a 19% do PIB. Na
China, o Estado é competente, custa pouco e investe muito. No Brasil, o Estado
é caro e incompetente, não investe, nem cumpre suas funções básicas.
É questionável se o
investimento estatal direto ainda seria capaz de fazer a diferença e acelerar o
crescimento no Brasil. O modelo foi adotado por aqui durante o regime militar.
Depois de reformas modernizadoras, inteligentemente concebidas e adotadas com
competência, as taxas de crescimento atingiram níveis de até dois dígitos,
durante o chamado "milagre econômico", da primeira metade da década
de 70. O seu esgotamento, a partir da década de 80, deixou um triste legado: o
Estado deficitário e endividado, as empresas estatais esclerosadas e duas
décadas de estagnação sob o signo da inflação crônica.
Modelo. Na
última década, o Brasil se beneficiou do ganho nas relações de troca com o
exterior. A alta dos preços dos produtos primários, provocada pela demanda da
China, significou uma expressiva transferência de renda para o Brasil. Os
governos do PT foram suficientemente inteligentes para manter as bases da
política macroeconômica, mas passaram a desmontar as reformas que viabilizaram
a estabilidade monetária. O processo se acelerou a partir da crise de 2008.
Aparelharam o Estado, criaram novas estatais e elegeram parceiros privados
incompetentes. Com a desculpa de praticar uma politica anticíclica, expandiram
o gasto corrente do governo, mas não investiram em infraestrutura. O resultado
é conhecido: baixa produtividade, uma economia que não cresce e contas públicas
que se deterioram.
Não é possível saber se o
capitalismo de estado chinês continuará bem-sucedido, mas uma coisa é certa: o
capitalismo chinês requer um Estado competente e autoritário. No Brasil, não
temos a requerida competência, nem desejamos - quero crer - o autoritarismo.
Diante da complexidade do mundo contemporâneo, a tentação da solução
autoritária estará sempre presente, mas o caminho mais promissor é o da
alternativa delineada na conferência de Viena: não insistir na tradicional
gestão centralizada, de comando e controle, mas avançar na descentralização. Um
Estado autoritário e patrimonialista, sustentado pela demagogia, o marketing e
a intimidação, onde apenas as aparências democráticas são respeitadas, é o
caminho mais rápido para volta ao subdesenvolvimento. A fórmula, como demonstra
sua aplicação na Argentina e em outros países vizinhos, é devastadora.
Não há como bem governar com
o Estado disfuncional. A primeira tarefa de quem pretende fazer um bom governo
será a de reconstruir o Estado. No lugar de insistir numa reforma de cima para
baixo, de comando e controle, deveríamos experimentar a descentralização.
Deveríamos voltar à federação, dar autonomia aos Estados e aos municípios em
todas suas esferas, desde a fiscal, até a segurança, a saúde e a educação. Como
escreveu Hirschman, no prefácio da edição alemã do seu Exit, Voice and
Loyality: "Assim como os economistas, com a ênfase nas virtudes da
competição (i.e. da 'saída'), não deram atenção à contribuição da 'voz', os
cientistas políticos, com seu interesse na participação política e no protesto,
negligenciaram o possível papel da 'saída' na análise do comportamento
político." Tenho a impressão de que mais possibilidade da opção de
"saída" em relação à "voz", isto é, de ter a opção de se mudar
ao invés de protestar, é mais importante do que nunca, num mundo complexo e
interligado.
Os mercados não são
milagrosos, mas um pouco de competição no sistema político, sob o guarda-chuva
de uma verdadeira federação, pode ser a única forma de viabilizar a
complexidade contemporânea com a democracia e a existência de Estados
eficientes e com mais respeito pelos contribuintes.
André
Lara Resende – economista, ex-presidente do BNDES.
Fonte: jornal Estado de São Paulo