Olhe ao seu redor. A não
ser que você viva em um grotão, possivelmente vai encontrar alguma coisa
fabricada do outro lado do mundo. A tecnologia do seu celular é americana, coreana
ou europeia, mas ele foi produzido na Ásia. Seu time de futebol joga com uma
camisa cujo fabricante é americano ou alemão. Sem surpresas. Você é um cidadão
globalizado. Mas as empresas transnacionais não existem desde a aurora dos
tempos. Alguém teve de inventá-las. Esta é a história de duas concorrentes que
ajudaram a criar o mundo em que você vive.
Inaugurada em 1600, a
Companhia das Índias Orientais britânica é considerada a mãe das grandes empresas atuais. Em mais de dois séculos e
meio de existência, fez a ponte de todo o comércio entre a Inglaterra e a Ásia,
especialmente com a Índia, onde a empresa governou com mão de ferro – e
inventou o hábito britânico da hora do chá. O modelo de empreendimento que
presta contas apenas a seus investidores nasceu com a companhia que surgiu em
Londres.
No auge, seu império comercial se desdobrava do Reino Unido ao
Golfo Árabe e a Índia, com bases comerciais na Ilha de Santa Helena – onde
Napoleão, exilado, morreu tomando chá da Companhia –, Basra e Gombroon, no
Oriente Médio. Foi na Índia que sua presença se fez sentir intensamente.
Algumas das principais cidades costeiras do país, como Calcutá, Bombaim (hoje
Mumbai) e Madras surgiram do comércio praticado pela empresa, que, mais tarde,
acabaria por penetrar também na China. As “guerras do ópio” nasceram de
questões comerciais.
“Quando da extinção da
Companhia, em 1847, a economia europeia era duas vezes maior que a
chinesa e a indiana, uma completa inversão da situação de 1600”, diz o
historiador Nick Robins, emA Corporação que Mudou o Mundo. “A
Companhia das Índias Orientais foi um dos principais fatores da grande virada
de desenvolvimento global que marcou o nascimento da era moderna.”
Na Holanda
Sua congênere holandesa,
fundada dois anos depois, não ficou atrás. Com base no que hoje é a Indonésia,
praticamente monopolizou o comércio mundial de especiarias. Quando havia
superprodução de determinado produto, os holandeses não hesitavam em destruir
as plantações de seus parceiros locais. A Cidade do Cabo, na África do Sul, que
nasceu como entreposto da Companhia, foi a base da colonização bôer na região.
Ainda que Batávia, a
cidade holandesa que ocupou o lugar onde hoje é Jacarta, capital da Indonésia,
tenha sido uma fonte de poder no sudeste asiático por quase um século, nada se
compara com o papel desempenhado pela Companhia britânica na Índia.
Em The
Economic History of India Under Early British Rule, o historiador
econômico Romesh Dutt analisa o papel da instituição e seu modus
operandi. “O domínio da Companhia das Índias Orientais mudou a
Índia”, diz Dutt. Para ele, a empresa “tratou o país como uma vasta propriedade
agrícola cujos lucros haviam de ser retirados da Índia e depositados na
Europa.”
Na comunidade de
negócios, a Companhia britânica sempre exerceu fascínio pelo sucesso comercial,
um modelo para a economia global atual. Rod Eddington, ex-diretor executivo da
British Airways, viu um incentivo similar na crônica da Companhia, para ele um
exemplo de como as empresas prosperam “à força de trabalho árduo, astúcia e
sedução”. A carreira de Warren Hastings, o primeiro governador-geral da Índia
em 1773, ilustra o equilíbrio entre o cultural e o comercial. Fluente em
línguas locais, Hastings foi um grande filantropo e patrocinou a primeira
tradução inglesa doBhagavad Gita (um importante texto
religioso hindu), apoiou a criação de uma madrassa para estudantes muçulmanos
em Calcutá e ordenou a construção de um templo budista às margens do Rio Hugli.
O primeiro líder político da Índia independente, Jawaharlal Nehru, disse que “o
país tem uma enorme dívida de gratidão com os executivos da empresa britânica
por ajudar na redescoberta de sua herança”. A Companhia das Índias Orientais
merece ser vista como era – uma empresa com fins lucrativos que gerou muita
riqueza, mas também contribuiu para gritantes desigualdades. ‘‘Dois séculos
depois, ela demonstra que a busca da responsabilidade empresarial é um
exercício permanente de canalização da energia de comerciantes e empresários,
de tal maneira que suas paixões privadas não prejudiquem o interesse público”,
afirma Nick Robins.
Privilégios
A Companhia das Índias
Orientais foi estabelecida como “organização político-corporativa”, o que lhe
rendeu, em 1600, o status de instituição privilegiada sobre as demais. “Sua
estrutura hierárquica, que não era inédita, se baseava nas companhias
italianas, sobretudo florentinas, dos séculos 14 e 15”, afirma Daniel Strum, da
Universidade de São Paulo. Geralmente, cartas reais eram emitidas apenas a
comerciantes donos de empresas privadas com propósitos públicos – ou seja, que
dividissem seus lucros com a Coroa e o Parlamento.
A Companhia inglesa
tinha muito em comum com sua rival holandesa Verenigde Oostindische Compagnie,
a VOC. Ambas utilizavam sistemas de administração fortemente hierarquizados,
sustentados por um pequeno exército de escreventes – os writers
ou shcrijvers. Eram publicamente controladas e
transacionadas. A VOC era considerada um investimento mais atraente ao longo do
século 17. Havia, porém, notáveis diferenças em seus sistemas de governança. Os
diretores da VOC eram escolhidos por câmaras provinciais, e seu conselho
diretor, formado por proprietários de parcelas substanciais das ações da
companhia, mas aí terminava a ligação com a base acionária: os acionistas da
VOC estavam com o capital, mas não tinham voz na escolha daqueles que
administravam seus investimentos e conduziam sua política. A VOC era uma
empresa poderosa, mas não uma corporação. A origem pública da forma corporativa
da Companhia inglesa proporcionava aos acionistas não apenas a participação
financeira, mas também o direito de voto, tornando- os algo como o eleitorado
de um burgo parlamentar do século 18.
Marcelo Testoni – jornalista
Fonte: site controversia