As
mentes mais extraordinárias da Terra pertencem a pessoas que mal conseguem
falar ou calçar os próprios sapatos.
Conheça
os savants - e o que eles podem nos ensinar sobre os limites da inteligência
humana
Kim
Peek lê um livro de 300 páginas em 40 minutos. Uma página com cada olho. Esse
americano de 57 anos já leu 9 mil livros, o que dá mais ou menos um a cada dois
dias desde a infância. E com uma diferença em relação a você: ele não esquece
nada do que leu. Kim sabe de cor a história de todos os países, seus
presidentes, quando eles nasceram, quem foram as esposas deles... Recita
qualquer trecho da Bíblia, do Alcorão ou da estrutura de um ônibus espacial.
E
tudo isso é pouco perto do que o britânico Daniel Tammet faz. Ele simplesmente
inventou uma matemática particular. Pergunte para Daniel quanto é, digamos, 27
elevado à 5ª potência. Ele vai responder rapidinho que isso dá 10 460 353 203.
Só que sem ter feito uma conta nem decorado nada. Os resultados surgem por
mágica na cabeça desse inglês tímido de 29 anos. E ele não é incrível só com
números. A rede americana de TV PBS o desafiou a aprender islandês, uma língua
que até quem nasceu na Islândia acha complicada, em uma semana. Sete dias
depois, Daniel estava num talk show em Reykjavik contando que o idioma deles
era “mjög fallegur” (“muito bonito”) – era a 11a das línguas que ele aprendia a
falar fluentemente.
Daniel
e Kim, diga-se, têm outra coisa em comum além desses superpoderes: os dois são
deficientes mentais, diagnosticados como autistas. Kim mal consegue falar, não
sabe abotoar a camisa e, quando criança, lhe recomendaram internação para o
resto da vida. Daniel é mais comunicativo, um rapaz bem simpático até, mas se
sente perturbado quando anda em ruas movimentadas e é tão desligado que não
consegue pegar um ônibus sem se perder. E eles não são únicos. Isso de combinar
algum problema mental com brilhantismo, ou até genialidade, em certas áreas, é
conhecido como síndrome de savant (“sábio”, em francês), uma condição raríssima
que desafia as idéias sobre como a mente funciona.
Afinal,
ninguém deveria ser capaz de decorar com precisão a quantidade de informações
que os savants (vamos chamá-los assim, daqui para a frente) conseguem acessar
sem o menor esforço em seus “discos rígidos” cerebrais. Também não parece fazer
sentido a maneira como muitos deles lidam com a matemática: fazer contas
gigantes é, para eles, uma atividade não consciente, como andar de bicicleta. E
se pessoas com inteligência e habilidades sociais normais aprendessem como
fazer isso? Será que todo mundo tem um “savant adormecido” dentro do próprio
cérebro? É o que veremos a seguir.
Idiotas
sábios
A
primeira descrição que temos do savantismo foi feita em 1887 por John Langdon
Down, psiquiatra britânico mais conhecido por ter feito também o primeiro
relato científico sobre a síndrome de Down. Uma das principais experiências de
Down com savants envolveu um paciente que conseguia recitar de cabeça o livro O
Declínio e Queda do Império Romano, um catatau de 6 volumes. Down batizou os
portadores do problema de “idiotas savants” (calma, na época “idiota” era um
termo técnico).
Alguma
forma extraordinária de memorização parece estar por trás de todos os casos de
savantismo, mas é bom qualificar essa afirmação: trata-se de uma memória
diferente da que você usaria para decorar um número de telefone, por exemplo.
Parece envolver pouco pensamento consciente e, muitas vezes, nem exige
compreensão do que está sendo decorado. Darold Treffert, psiquiatra da
Universidade de Wisconsin em Madison (EUA), relata o caso de dois gêmeos
americanos com dano cerebral congênito, George e Charles, que não conseguiam
fazer contas de somar simples, mas se divertiam gritando um para o outro
números primos (os que só são divisíveis por 1 e por eles mesmos) de 20
dígitos, da ordem de quintilhões. Em comparação, a sua memória só consegue
lidar com 7 ou 8 algarismos. É inconcebível fazer operações mentais conscientes
com números desse tamanho.
George
e Charles, assim como Kim Peek e vários outros savants, também eram
calculadores de calendário. Se você disser a Peek em que dia do mês e ano
nasceu, ele responde imediatamente com o dia da semana em que você veio ao
mundo.
O
preço que se paga para ser um savant é alto. Em geral, esses indivíduos são 10%
dos autistas, ou uma a cada 2 mil pessoas que sofreram algum dano no cérebro ou
nasceram com retardo mental. Uma grande exceção é justamente Daniel Tammet,
diagnosticado com síndrome de Asperger, uma forma moderada de autismo – o
portador tem boa capacidade verbal, embora normalmente seja um desastre social.
Além
de ser um savant, Tammet também tem sinestesia, uma forma rara de percepção que
faz o cérebro misturar sentidos – sons podem ter cores associadas a eles, por
exemplo. E isso torna a mente do rapaz ainda mais fascinante. A sinestesia dele
é numérica. Ele afirma que todos os números de 0 a 10 mil possuem formas
visuais específicas e até personalidades, como se fossem indivíduos mesmo. “O
11 é amigável, o 5 é barulhento e o 4 é meu número favorito, porque é quieto e
tímido como eu”, conta Tammet em sua autobiografia.
O
britânico também reconhece todos os números primos até 9 973 porque eles lhe
parecem “redondos e lisos, como os seixos numa praia”. Ao fazer multiplicações
enormes, seu tipo favorito de contas, Tammet visualiza as tais formas dos
números que estão sendo multiplicados lado a lado, separados por um espaço.
Essa brecha entre os números tem exatamente o formato do produto da
multiplicação: basta ele preenchê-la para que ele saiba, em poucos segundos, a
resposta certa (veja aqui ao lado).
O
neurocientista Vilayanur Ramachandran, do Centro de Estudos do Cérebro de San
Diego, testou as formas numéricas de Tammet, pedindo que ele as moldasse usando
massinha de modelar e, no dia seguinte, que as refizesse. O resultado foi
consistente, ou seja, o rapaz associa sempre a mesma forma ao mesmo número. O
inesperado nas capacidades de Tammet é que as pessoas normais tendem a pensar
nos números como abstrações puras, enquanto ele os transformou em objetos
altamente concretos, coisas tão fáceis de entender intuitivamente quanto um
cachorro ou um gato. Esse pode ser um segredo da inteligência savant, de acordo
com Darold Treffert. A memória que mais usamos para atividades intelectuais é a
consciente, que nos ajuda a lembrar se “espaço” se escreve com s ou cê-cedilha.
Mas há outro tipo importantíssimo de memória: a implícita – aquela que nos
permite trocar as marchas do carro sem pensar.
Você
pode ser um savant
Ao
que parece, os danos mentais que os savants têm os deixam sem acesso a grande
parte da memória consciente. Então seu cérebro simplesmente transfere as
funções dela para a implícita. E eles fazem automaticamente coisas que temos de
pensar (e muito) para fazer. É uma capacidade não muito diferente de reconhecer
um rosto. Nós nunca precisamos de uma descrição verbal da cara de um amigo para
determinar que ele é o Paulo, e não o José: nosso cérebro simplesmente sabe.
Para Tammet, os números funcionam assim. E talvez você seja mais parecido com
ele do que imagina.
É o
que pensa o neurologista Allan Snyder, da Universidade de Sydney. Para ele,
existe um Daniel Tammet dentro da sua cabeça. Esse “savant interior”, segundo o
autraliano, foi quem fez você aprender a falar. Se você se mudar para a
islândia e tiver um filho lá, terá uma criança bilíngüe em casa. Ela vai
aprender português em casa e islandês na escola, e falar os dois idiomas. Você
pode até aprender a língua local, mas nunca terá a fluência do seu filho.
Essa
habilidade mágica de “sugar” um idioma existe apenas na infância porque a mente
vai “calejando” com o tempo. Por exemplo: Qem lê um txto scrito dste jto
consegue entender a frase porque o cérebro criou padrões para cada uma dessas
palavras. Com os sons de um idioma estranho é o contrário: sua mente está tão
calejada com o português que decifrar novas línguas de ouvido não é fácil. Já
os savants não teriam esse problema. Para Snyder, os danos físicos no cérebro
deles impedem que esses calos mentais apareçam. Daí a capacidade de aprender
islandês em uma semana.
E a
coisa mais maluca aqui é que Snyder quer fazer com que esse savant que um dia
esteve na sua cabeça apareça de novo para dar um oi. Como? Aplicando ímãs no
crânio. A idéia é “desligar” temporariamente partes da massa cinzenta a fim de
simular os danos que os savants têm no cérebro. E assim fazer com que você veja
o mundo como se fosse um deles. E não é que deu certo? Snyder fez com que
pessoas submetidas ao experimento “virassem savants” por algum tempo,
desenhando de forma mais precisa ou encontrando com mais facilidade erros de
digitação que o cérebro das pessoas normais costuma ignorar. E o australiano
vai mais longe. Ele acredita que novas versões de experiências como essas
poderiam despertar a criatividade de gente comum. Afinal, por alguns minutos,
poderíamos absorver informações em estado bruto, sem o filtro dos padrões
mentais. Aí seria possível usar isso para desafiar idéias preconcebidas e
inovar.
Como, aliás, inovaram dois savants famosos: Isaac Newton e Albert
Einstein. Não, não existe prova nenhuma de que eles portavam essa condição. Mas
alguns neurologistas acham que os dois apresentavam, sim, pelo menos alguns
sintomas da síndrome de Asperger – principalmente inabilidade social e
obsessões compulsivas. De fato, Newton mal abria a boca e ficava imerso no
trabalho a ponto de não comer. E Einstein, que se comportava como um autista
até os 7 anos, repetindo frases sem parar, era tão desligado que certa vez não
percebeu um terremoto enquanto divagava. Talvez nunca saibamos se eles eram ou
não versões moderadas de Daniel Tammet. Mas Einstein pode ter deixado uma
pista: “Uso sinais, imagens mais ou menos claras, como ferramentas para pensar.
Elas se encaixam sozinhas, voluntariamente. Esse jogo de combinações me parece
mais essencial que construções lógicas com palavras”. Foi o que disse certa vez
o alemão. Qualquer semelhança disso com o que você leu nestas páginas talvez
não seja mera coincidência.
Cálculo savant
Daniel Tammet foi o primeiro savant que conseguiu descrever como sua mente faz cálculos sobre-humanos sem fazer força. Veja como. (E nem pense em tentar você mesmo!)
Pense em 3D
Ele imaginou formas para todos os números entre 0 10 mil. Cada um ganhou identidade própria.
Veja quem se encaixa
Para multiplicar, ele aproxima mentalmente os "números" e deduz como preencher o espaço entre eles.
Pronto!
Então Tammet lembra que forma tem o número que se encaixa melhor no espaço vago. E dá a resposta certa.
Para saber mais
Born on a Blue Day
Daniel Tammet, Free Press, 2007