Uma nova psiquiatria para superar a pandemia
Por que precisamos dos “manifestadores da mente”.
São Paulo é a capital mundial dos
transtornos mentais. Embora não seja reconhecido oficialmente, o título pesa.
Em 2012 a Universidade Harvard coordenou um estudo com a USP
entre as megalópoles planetárias, e a cidade levou o ouro.
O Brasil também sobe
ao pódio em vários outros levantamentos psiquiátricos.
Não estamos todos
loucos, mas temos alta prevalência de depressão, transtornos de ansiedade e
trauma por violência epidêmica que afetam mais de 80% da população de cidades
como São Paulo e Rio de Janeiro.
O desafio é gigantesco e requer
políticas públicas de prevenção e mitigação.
Mas a psiquiatria parece mal
preparada para enfrentar a magnitude da tarefa.
Grandes farmacêuticas se retiraram do setor em 2010, um “annus
horribilis”, e essa retração se refletiu no aperfeiçoamento dos fármacos: os
medicamentos atuais oferecem ganhos pequenos comparados aos de quatro décadas
atrás.
E mais: em toda a medicina, a maior taxa de eventos adversos provocados
por medicação incide sobre o tratamento psiquiátrico, afetando 80% dos
medicamentos, o dobro da taxa da neurologia.
Enquanto a situação piora durante a
pandemia, um campo há pouco pequeno e marginal ocupou o centro das atenções: o
estudo do uso terapêutico das substâncias psicodélicas.
Nos últimos anos, os
investimentos privados saltaram de um para trezentos milhões de dólares, após
sete revistas científicas dedicarem suas capas ao assunto.
Assim como a ciência
nos trouxe as tão necessárias vacinas contra o coronavírus, será ela que poderá
providenciar novos tratamentos psiquiátricos, mais rápidos, seguros e eficazes.
A natureza psíquica dos efeitos dos
psicodélicos (em grego, “manifestadores da mente”) dispensa apresentações:
visualizações caleidoscópicas e fractais multicoloridas, sensação de sinestesia
(fusão dos sentidos, como visão e audição), fragmentação ou dissolução do ego e
picos emocionais intensos compõem o cerne de uma experiência capaz de marcar
vidas.
Cerca de 70% dos participantes de um estudo classificaram
o efeito da psilocibina como um dos cinco momentos mais importantes da vida.
Uma experiência psicodélica pode propiciar profunda ressignificação de si mesmo e de nossas
relações humanas e não-humanas.
Por que foram precisos quase oitenta anos para
levar a sério uma possibilidade como essa?
Não fossem os estigmas e armadilhas
semânticas da guerra contra as drogas, a história poderia ter sido outra.
Quando resolvi estudar o assunto, há quinze anos, me disseram que seria um
“suicídio profissional”. Felizmente estavam errados.
Em São Paulo, mapeei ondas
elétricas cerebrais de voluntários sob efeito da ayahuasca.
No Imperial
College, em Londres, participei do primeiro estudo de neuroimagem com o LSD, que revelou o que
ocorre no cérebro humano quando milhões de neurônios são ativados pelo famoso
psicodélico.
De volta ao Brasil, realizamos a primeira pesquisa com MDMA no tratamento
de casos graves de transtorno de estresse pós-traumático, e seu uso com
prescrição provavelmente será aprovado nos EUA até 2023.
A substância é
administrada num modelo chamado psicoterapia assistida por psicodélicos (PAP),
que pode ser comparada a uma “cirurgia psiquiátrica” por sua ação pontual, de
eficácia quase imediata e duradoura.
E estamos prontos para muito mais.
Identificamos entre profissionais de saúde brasileiros um desconhecimento
significativo sobre o assunto.
Em 2020, lançamos um curso online sobre psicodélicos
e saúde mental pelo Instituto Phaneros, e ainda em 2021 iniciaremos uma
formação especializada em PAP para médicos, psicólogos e psicoterapeutas.
Para
colocá-la em prática de forma legítima e segura, obtivemos aprovação da
Comissão Nacional de Ética em Pesquisa para uma série de estudos com MDMA e
psilocibina em quase trezentos pacientes com transtornos mentais relacionados à
pandemia de Covid-19, que lamentável e desnecessariamente se estende no Brasil.
A devastação desta pandemia só será
superada se também cuidarmos da saúde mental.
EDUARDO SCHENBERG - doutorado em
neurociências pela USP e é diretor do Instituto Phaneros.