Ói nóis aqui, mano!


Em junho do ano passado, o país foi surpreendido com a explosão de manifestações que começaram em São Paulo e rapidamente se espalharam por todo canto, tendo como pretexto a qualidade e o preço do transporte público, mas que logo ganharam outros contornos.

Passada a perplexidade, vieram as conclusões. E todas apontavam para os vilões de sempre: a qualidade dos serviços públicos e as mazelas da classe política. Saúde, educação, segurança, transporte, legitimidade da representação política, corrupção, impunidade... Ou seja, a agenda da classe média. “O Brasil acordou!”, saudou a grande mídia, após um vacilo inicial. Mas poucos se deram conta de que ali foi gestado, também, o embrião de uma outra coisa. Bem mais profunda. E difusa.

Os brasileiros talvez tenham, finalmente, acordado. Mas a elite continua dormindo em berço esplêndido. Rechaçou a primeira manifestação, pacífica, diga-se, promovida por pessoas que nunca tinham ido pra rua, e apoiou a repressão violenta, através dos seus porta-vozes midiáticos. O caldo engrossou. E entraram em cena novos atores: os excluídos.

Novo cenário, novo discurso: “manifestação pode, é democrática; baderna, não.” E logo classificaram os atores: manifestantes e vândalos, como se a questão fosse apenas de nomenclatura. No entanto, não foram os manifestantes, mas os “vândalos” que se fizeram ouvir e, em alguma medida, ameaçaram o sistema. Eles, sim, meteram medo de arrepiar. “E se a boiada estourar, ninguém segura!”, vaticinou um comerciante da Av. Paulista.

Entre os chamados “vândalos”, a grande maioria não era de bandidos, como se verificou com as prisões, mas de moradores das periferias. Excluídos, apenas.

Uma pergunta

Há 14 anos, cerca de cem moradores de uma favela do Rio alugaram um ônibus e foram passear num shopping da zona sul. Não passaram da porta. Clientes, lojistas e vendedores entraram em pânico. Veio a polícia. Logo depois, a imprensa. Câmeras ao vivo. Sem argumento para manter a proibição, o shopping cedeu. E os favelados entraram, transpondo a barreira invisível da segregação social. Subiram e desceram pelas escadas rolantes, alguns pela primeira vez. Visitaram lojas. Provaram roupas. Na praça de alimentação, comeram o pão com mortadela que haviam levado. Na mais perfeita ordem. De agressivo e violento, apenas a pobreza. Suas caras. Suas roupas. Suas existências, talvez (ver aqui).

Esse, o embrião dos rolezinhos de hoje, que, como as manifestações de junho, começaram pacíficos. Reprimidos, degringolaram. Viraram saques e arrastões. Na maioria, adolescentes. Pobres. Moradores das periferias. Sempre eles. Os excluídos. “Ói nóis aqui, mano!”

No chamado “país do futebol”, eles também estarão excluídos da Copa. Assim, quando a câmera focalizar a família loira, bonita e bem vestida, comemorando o gol de Neymar (um ex-morador da periferia), Galvão Bueno dirá com sua voz empostada e pretensamente comovida: “Que coisa linda de se ver! A família brasileira de volta aos nossos estádios.”

Sei que ninguém está preocupado com isso. Vou perguntar apenas por perguntar: e se a boiada estourar, quem segura?

Joca Souza Leão - cronista do Jornal do Commercio (Recife, PE)

Fonte: site Observatório da Impresna

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