Ele tornou a vida mais simples, e está no bolso de todo mundo.
Mas também revela muita coisa a seu respeito. As empresas de cartão querem prever
o que você vai fazer - antes que você mesmo saiba. Conheça os segredos do
dinheiro de plástico.
Pense nas 10 últimas coisas que
você comprou. Várias, talvez a maioria, não foram com dinheiro nem cheque -
foram com um cartão de débito ou crédito. Todo mundo tem um. Passar o cartão é
tão corriqueiro quanto escovar os dentes. Mas por trás desse ato banal existe
algo que você nem imagina: bancos de dados que registram todos os seus passos e
sabem muito sobre você. Quer um exemplo? As empresas de cartão são capazes de
prever se uma pessoa vai se divorciar. E com até dois anos de antecedência - ou
seja, antes que o próprio indivíduo tenha resolvido acabar com o casamento.
Suas compras dizem muito sobre você. E a maquininha está ouvindo.
Quando você passa o cartão, ela se comunica com a credenciadora (nome técnico
da empresa de cartão) e com o seu banco - ambos precisam autorizar a transação.
Durante os segundos em que o visor diz "processando", muita coisa
acontece. Uma bateria de computadores checa várias informações, como o valor da
compra, o tipo de estabelecimento, o horário e o período entre essa compra e a
anterior. Para descobrir se é você mesmo que está usando o cartão, tudo isso é
comparado com o seu histórico. Já teve o cartão bloqueado ao fazer uma compra
muito alta, num lugar onde nunca tinha estado, ou porque usou o cartão duas
vezes em menos de uma hora? Os computadores concluíram (incorretamente) que a
operação não batia com os seus padrões de consumo.
O problema é que essas regras
são estáticas, ou seja, não conseguem acompanhar a evolução e a variedade de
golpes, calotes e trapaças envolvendo cartões. Então as empresas resolveram
partir para uma técnica muito mais sofisticada: as redes neurais. Basicamente,
são programas de computador que conseguem aprender sozinhos: analisam as
próprias decisões, descobrindo onde acertaram e erraram, e também são capazes
de inventar novos critérios de julgamento. Enquanto você está comprando, tem um
robô pensando a respeito.
E ele sabe muito sobre você: que a sua comida preferida é a japonesa e, mais
que isso, que você costuma frequentar mais as temakerias de determinado bairro.
Que a sua família provavelmente acaba de comprar um animal de estimação - por
causa das visitas frequentes a pet shops. Que sua irmã, prima, amiga ou até
você mesma vai se casar - pelos gastos crescentes em floricultura, igreja,
bufês, loja de vestidos. Que você está usando óculos, por causa das contas em oftalmologistas
e óticas. É um grande estudo psicológico ou sociológico sobre a população -
baseado apenas em dados.
As empresas de cartão não falam abertamente sobre o assunto, e fazem questão de
ressaltar que não têm acesso ao nome dos consumidores - informação que fica no
banco onde a pessoa tem conta. Elas só conseguem ver o que está no recibo, ou
seja: o número do cartão, nome do estabelecimento, horário e valor da compra.
Mas isso já é o bastante.
Olhe este quadro ao lado. Pedimos a uma pessoa da redação da SUPER que
guardasse todos os seus recibos de cartão de débito e crédito durante 20 dias.
Em seguida, analisamos o que essa pessoa tinha comprado, onde e quando. A
amostra é pequena, não se compara aos bancos de dados das empresas de cartão.
Mas já foi o suficiente para levantar coisas reveladoras sobre o dia a dia
dessa pessoa. Você, quem sabe, talvez até descubra qual de nós ele (ou ela?)
é.
E, como as empresas de cartão têm um banco de dados monstruoso - só o
computador central da MasterCard, nos EUA, armazena 652 mil gigabytes de dados
(175 vezes o tamanho da Biblioteca do Congresso americano, a maior do mundo) -
estão chegando a conclusões bem específicas. Ou, no mínimo, curiosas. Segundo o
economista americano Ian Ayres, professor da Universidade Yale e autor do livro
Supercrunchers, sobre estatística e análise de dados, elas têm como saber, com
até dois anos de antecedência, se uma pessoa vai se divorciar. "A Visa já
faz isso, para prever melhor o risco de atrasos no pagamento", afirma. É
que a separação desestrutura a vida financeira das pessoas, aumentando muito as
chances de calote. Ayres não revela como a empresa faz isso (quais tipos de
compra poderiam revelar propensão ao divórcio), mas a informação foi confirmada
por uma empresa que também tem enormes bancos de dados sobre seus consumidores:
o Google. "O grau de acerto é de 98%", disse a vice-presidente do
Google, Marissa Mayer. "Eles veem isso pelo padrão das suas
compras."
As empresas de cartão de crédito negam. Mas alguns critérios acabaram vazando.
Por exemplo: se você muda de supermercado, tem grandes chances de estar com
problemas financeiros. É o que pensa a American Express, que nos EUA rebaixou o
limite de crédito de consumidores que tinham começado a frequentar o Wal-Mart -
porque seus computadores apontaram que, pelo menos para os americanos, comprar
lá indica queda no padrão de vida. "Segundo nossa análise, os consumidores
que fazem transações com certas lojas apresentam maior probabilidade de não
pagar", declarou a Amex em nota. A medida, que também afetou quem comprava
em outros estabelecimentos comerciais, deu resultado: o índice de inadimplência
da empresa caiu de 4,9% para 4,4%. Ninharia? Muito pelo contrário: cada 1% a
menos de calote no setor equivale a US$ 10 bilhões economizados pelas empresas
de cartão. Afinal, estamos falando de uma dívida gigantesca, que só nos EUA
chega a US$ 972 bilhões (mais da metade do PIB brasileiro).
O mundo está pendurado no cartão de crédito. Com a crise global e o risco de
calotes em massa, as empresas resolveram apostar mais e mais em suas redes
neurais. Isso levou a algumas conclusões estranhas (fazer terapia, ter um
massagista ou ir a determinados bares aumenta as chances de uma pessoa não
pagar o cartão) ou simplesmente engraçadas. "Ofendido é pouco. Eu fiquei
com nojo", disse à TV americana o executivo Kevin Johnson, que nunca
atrasou um pagamento - mas teve seu limite de crédito reduzido de US$ 10 mil
para US$ 3 mil depois que viajou com a mulher para a Jamaica. A inadimplência é
o grande ponto fraco da indústria de cartões desde seu surgimento. Mesmo porque
ela só começou por causa de um quase calote.
O primeiro cartão do mundo
Se o senhor Frank McNamara andasse pela rua Teodoro Sampaio, em São Paulo,
certamente ficaria orgulhoso. Lá, uma banca de camelô ostenta orgulhosamente o
adesivo: "Aceito Visa". Os cartões estão mesmo em toda parte.
Taxistas, engraxates e até vendedores de praia aceitam. É o resultado de uma
revolução econômica e tecnológica que começou em 1950, quando McNamara foi
jantar e, na hora de pagar a conta, percebeu que sua carteira estava vazia -
teve de ligar para a esposa e pedir que ela trouxesse dinheiro de casa. Ele
teve a ideia de convencer 14 restaurantes de Nova York a aceitarem um cartão
(que era de cartolina) como pagamento. Nascia o primeiro cartão de crédito do
mundo: o Diners Club ("clube dos convivas", em inglês). Só no
primeiro ano, ele conquistou 42 mil usuários, que podiam usá-lo para pagar a
conta em 330 bares, restaurantes e hotéis conveniados.
Demorou um pouco, mas outras empresas acabaram percebendo que o negócio era
bom. Em 1958, foram fundadas a Visa (que na época se chamava Americard) e a
American Express, que começou a dominar o mercado porque vendia uma imagem de
exclusividade: sua anuidade era propositalmente mais cara que a dos outros
cartões. E em 1966 surgiu a MasterCard - que hoje controla, junto com a Visa,
96% do mercado mundial de cartões. O crescimento do setor se deve muito à
insistência das empresas: em 2005, enviaram pelo correio 10,2 bilhões de
cartões de crédito não solicitados - 1,5 para cada mulher, homem e criança viva
na Terra. Some a isso os cartões de débito, hoje em dia quase inevitáveis (todo
mundo com conta em banco possui automaticamente um), e você entenderá por que o
dinheiro de plástico tomou conta do mundo.
As operadoras de cartão não se importam se você atrasar um pouco os pagamentos
- afinal, 40% do que elas faturam vem de juros e multas. Mas, ao distribuir
bilhões de cartões para pessoas que mal conhecem, se expõem a um risco cada vez
maior de calote. Daí sua mania de analisar o comportamento humano.
Mas por trás disso tudo existe uma pergunta mais profunda. Por que, afinal,
tanta gente gasta mais do que deve?
A fatura está no cérebro
Dinheiro não dá em árvore. E a fatura faz questão de lembrar, todo mês, que
toda ação gera uma reação. Mas às vezes não parece, quando acumulamos tíquetes
amarelos no fundo da carteira, que mais uma compra não vai fazer tanta
diferença? Não é irresponsabilidade: o cartão engana nosso cérebro. O
neuroeconomista George Loewenstein, da Universidade Carnegie Mellon, descobriu
que duas regiões no cérebro competem quando estamos pensando em comprar alguma
coisa. O núcleo accumbens (NAcc), associado a sensações boas, costuma se ativar
quando percebemos que vamos ganhar alguma coisa de que gostamos - comida ou
dinheiro, por exemplo. Num estudo de mapeamento do cérebro, o NAcc se acendeu
quando alguns produtos foram mostrados para cobaias humanas. Mas, quando os
preços dos produtos eram mostrados, outra região era ativada: a ínsula, região
do cérebro associada a dor e perda. Quanto mais injusto parecia o preço, mais
acesa a ínsula ficava. Se sua atividade ultrapassasse determinado nível, conta
Loewenstein, as pessoas não compravam o produto.
Os cartões distorcem essa competição entre as partes do cérebro. Porque, quando
você paga com eles, a ínsula fica inativa - não faz nada para conter a
empolgação do NAcc. Isso também explica por que, conforme outros estudos
apontaram, as pessoas gastam mais com dinheiro de plástico. "Parece que
você não está gastando", diz o professor. Verdade.
A única solução é fazer mais força para se controlar. Afinal, não há nada pior
do que tomar um susto ao abrir a fatura do cartão. Como o que levou o americano
Josh Muszynski, 22 anos, que recebeu da Visa a maior cobrança da história: US$
23 quatrilhões. "Fiquei em pânico", conta ele, que havia usado o
cartão de débito para comprar um reles maço de cigarros. Foi um erro do
sistema, que bloqueou o cartão e multou Josh por ter ultrapassado seu limite de
gastos. Cigarro: US$ 5. Multa: US$ 15. Receber uma fatura de US$ 23
quatrilhões? Não tem preço.
Passando recibo
Analisamos todos os gastos que uma pessoa fez, com cartão, durante quase 20
dias. É um funcionário da SUPER. Veja o que descobrimos sobre essa pessoa
26/8 Quarta
10h24 - Posto de Serv Dinâmico - R Heitor Penteado R$ 52 [1]
Tem carro (só os proprietários pagam pelo combustível).
27/8 Quinta
11h35 - Estacionamento Clube Pinheiros R$ 3,50 [2]
29/8 Sábado
13h36 - Ellus do Brasil R$ 309 [3]
Compra roupa de grife e paga à vista. Bom poder aquisitivo.
15h29 - Estacionamento C. Pinheiros R$ 3,50 [4]
16h23 - UO Katsu Sushi R$ 44 [5]
Sushi custa caro. Pelo valor, estava sozinho (ou não pagou a conta para o acompanhante).
31/8 Segunda
21h14 - HortiFrutti R$ 23,82 [6]
3/9 Quinta
22h42 - Pão de Açúcar - Rua Teodoro Sampaio R$ 57,61 [7]
4/9 Sexta
11h42 - Fran’s Café - Haddock Lobo R$ 10,70 [8]
5/9 - Sábado
15h14 - Estacionamento C. Pinheiros R$ 3,50 [9]
16h19 - UO Katsu Sushi R$ 50 [10]
Mesmo padrão do último sábado. Primeiro vai ao clube, depois almoça sozinho.
6/9 Domingo
01h28 - La Tartine - R Fernando Albuquerque R$ 39 [11]
03h42 - Auto Posto Bela Cintra R$ 50 [12]
Após 10 dias, abasteceu o carro com 25 l de combustível (vide itens 1 e 12).
Logo, roda em média 20 km por dia. Mora perto do trabalho.
7/9 Segunda
15h22 - Sushi Tanabe R$ 26,50 [13]
Gosta mesmo de comida japonesa. E de pagar apenas a própria conta.
8/9 Terça
20h53 - Droga Verde R$ 30,07 [14]
22h03 - Horti Frutti R$ 24,62 [15]
11/9 Sexta
11h25 - Farmácia de Manipulação R$ 37 [16]
12/9 Sábado
15h12 - Ki Peixe - R da Cantareira R$ 24 [17]
16h26 - Ki Peixe - R da Cantareira R$ 22,50 [18]
Vai muito ao clube e come bem: sushi, peixe e verduras da quitanda (vide
itens 2, 4, 5, 6, 9, 10 e 15). Por isso, apesar dos recentes gastos com
remédios (14, 16), terá poucos problemas de saúde na vida - e baixo risco de
dar calote.
13/9 - Domingo
14h03 - Estacionamento C. Pinheiros [19] R$ 3,50
15/9 Terça
21h01 - Auto Posto Itália R$ 30 [20]
0h01 - Mercearia São Pedro R Rodésia R$ 16 [21]
0h04 - Mercearia São Pedro R Rodésia R$ 43 [22]
Duas compras no mesmo estabelecimento alimentar, com mínima diferença de
tempo. Deve ter pago a conta para os amigos. Até que enfim!
16/9 Quarta
21h50 - Estacionamento C. Pinheiros R$ 3,50 [23]
Foi ao clube à noite e chegou tarde em casa. E gasta pouco em supermercado
(item 7). Logo, não tem filhos.
17/9 Quinta
0h52 - Bar da Praça $ 55 [24]
Pagou toda a conta de novo. Será que ganhou um aumento?
À prova de fraudes. Será?
Cartão do futuro tem visor e teclado embutidos
Muita gente já foi vítima dos "chupacabras": maquininhas adulteradas,
que capturam o número e a senha do seu cartão e repassam para golpistas - que
usam essas informações para cloná-lo. Mas a tecnologia CodeSure, que a Visa já
está testando na França e na Inglaterra, promete acabar com isso. Você digita a
sua senha no teclado do próprio cartão (veja acima). Ele gera uma senha
temporária, exibida num pequeno visor. Aí você digita essa senha, na
maquininha, para autorizar sua compra. É uma chateação, mas reduz muito o risco
de fraudes: como a maquininha só tem acesso à senha temporária, não consegue
clonar o cartão.
Bruno
Garattoni e Mariana Delfini – jornalistas da Editora Abril;
editor da revista Superinteressante
Fonte: site Abril