Paulistas
dos séculos 16 e 17 eram obcecados em escravizar índios
Desde
que se tornou vice-presidente do Brasil, o general Hamilton Mourão levou
tamanho banho de loja e de “media training” (técnicas para não falar
barbaridade na frente de jornalista, basicamente) que alguns incautos chegaram
a achar que estavam diante de uma pessoa razoável quando ele abria a boca nos
últimos meses.
Mas
o Twitter, como sabemos, é melhor do que vinho para extrair do sujeito suas
verdadeiras opiniões, de modo que, há poucos dias, o “vice-presida” nos
presenteou com esta pérola de sabedoria em sua conta no microblog: “Donatários,
bandeirantes, senhores e mestres do açúcar, canoeiros e tropeiros fizeram o
Brasil. Só um povo empreendedor constrói um país dessas dimensões”.
A
lista é interessantíssima, não há dúvida, mas gostaria de me concentrar nos
bandeirantes, e os célebres desbravadores do sertão ainda estão entre os
alicerces da mitologia histórica paulista. Ocorre que, se quisermos mesmo
descrever os bandeirantes como empreendedores, os principais produtos de suas
“startups” foram morte e miséria – inclusive para eles próprios.
O bandeirante Domingos Jorge Velho retratado pelo
artista Benedito Calixto (1853 - 1927)
E
não é nem um pouco difícil achar informações confiáveis a esse respeito. Se
você só tiver tempo para ler um único livro sobre a história colonial
brasileira na vida, por favor devore “Negros da Terra: Índios e Bandeirantes
Nas Origens de São Paulo”, de John Manuel Monteiro (1956-2013).
O
historiador da Unicamp publicou a obra pela primeira vez em 1994, mas o livro
envelheceu tão bem, em grande parte graças à obsessão quantitativa de seu
autor, que acabou de ganhar uma edição em inglês. Analisando testamentos, atas
da Câmara Municipal e muitos outros documentos, Monteiro mostrou que os
paulistas dos séculos 16 e 17 eram obcecados por um único tipo de
empreendedorismo: escravizar índio.
“Ué,
mas e a busca por ouro e pedras preciosas? E as expedições heroicas que
expandiram nossas fronteiras?”, perguntará o leitor mais ingênuo. Em geral,
essas coisas eram, quando muito, pretextos para apresar “o negro da terra” (daí
o nome do livro) ou “o gentio da terra”, despovoando vastas regiões do interior
brasileiro para abastecer de mão de obra as fazendas de trigo – sim, trigo
– que começavam a se espalhar pelo que um dia seria a Grande São Paulo.
Para
isso, valia basicamente tudo. A legislação colonial coibia, em certa medida, a
escravização dos indígenas que não fossem capturados em “guerras justas” (em
geral, as de autodefesa). E os padres jesuítas defendiam que os nativos fossem
reunidos em aldeamentos próprios, prestando serviços – em tese, pagos – aos
colonos conforme a necessidade.
Incomodados
com a “burocracia” (veja só que belo paralelo com certos empreendedores de
hoje...), os paulistas não só engoliram os aldeamentos jesuíticos de sua região
como destruíram as missões da Companhia de Jesus no Guairá (região que
corresponde mais ou menos ao oeste do Paraná de hoje), atacando também regiões
do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina.
Com
isso, certos bandeirantes chegaram a possuir 500 ou mais escravos guaranis, que
não só cuidavam da lavoura como carregavam nas costas o trigo para venda no
porto de Santos e atuavam como soldados pessoais dos potentados paulistas em
novas expedições escravistas.
Nas
décadas finais do século 17, a maltratada mão de obra indígena foi se esvaindo,
assim como a fertilidade da terra. Restava, no século 18, um campesinato
mestiço e empobrecido.
Reinaldo José Lopes - jornalista especializado em biologia e arqueologia,
autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".
Fonte: coluna jornal FSP