Peixinhos autistas ficam calmos
e seguem adiante
Mutação torna animais imunes ao estresse dos outros.
Eu acho um espanto a maioria das
pessoas ser neurologicamente "normal", estatisticamente falando: 95%
das pessoas concentram sua existência em uma gama um tanto limitada de
diversidade dos vários aspectos do comportamento.
É muita coisa para
dar errado, e note que já estamos falando somente daquelas gestações que foram
de fato a termo e deram origem a uma nova pessoa, quando um número expressivo
de gravidezes nem chega a ser detectado pois se auto-extinguem devido a variações
aqui, ali e acolá que inviabilizam o embrião.
É bom eu nem falar muito alto,
ou os defensores da vida-a-qualquer-custo vão querer se meter a hospitalizar
mulheres pós-coito para salvar talvez-embriões do seu processo automático de
controle de qualidade do desenvolvimento.
Entre essa auto-extinção daquilo que
não funciona e a auto-organização do cérebro que sobreviveu ao tal
"controle de qualidade" intrínseco o que emerge é uma maioria de
indivíduos passavelmente "normais" –mais uma minoria de
neurodivergentes.
E como é muita coisa para dar
errado, também os divergentes divergem na razão da sua divergência.
Por isso é
raro um "tipo" de neurodivergência ser univocamente associado a uma
variação genética.
Considere os genes Shank, por exemplo, que codificam
proteínas que montam as sinapses, conexões entre neurônios.
Menos de um
porcento dos neurodivergentes no espectro autista —que já são uma minoria
ínfima da população– têm pedaços faltando nesta parte específica do genoma, que
é exatamente igual em todas as pessoas normais.
São várias as maneiras de ser
autistas, de fato.
Mas corte fora um pedaço de um
desses genes Shank, e 100% das vezes o resultado é um animal –camundongo, rato,
macaco ou humano– que sofre de ansiedade e tem seu comportamento social
alterado em vários aspectos.
E meus colegas em Portugal acabam de acrescentar o reles
peixe paulistinha à lista (perdão, amantes de peixes).
É isso aí: reproduzir em
um peixe a alteração genética associada a autismo, ainda que em uma minoria das pessoas
autistas, gera um peixe que a gente só não chama de autista porque todos
revirariam os olhos, então a gente chama apenas de Peixe-Mutante-Para-Shank3a.
Este é o trabalho da equipe de Rui Oliveira, do Instituto
Gulbenkian de Ciências e do Instituto Universitário de Portugal.
Ao observarem,
de um corredor, vídeos de outros peixes (sim, peixes também prestam atenção em
telas), peixes "normais" viram o corpo em direção ao vídeo do peixe
que mostra nado errático e desorganizado em resposta a um alarme, para longe do
outro peixe nadando tranquilamente no outro vídeo —mas os mutantes não dão a
mínima e continuam na deles, ignorando os outros.
Passado o estresse alheio, os
peixes normais continuam preferindo virar para onde o peixe estressado estava
—e os mutantes continuam não dando a mínima: seguem virados para a frente no
corredor.
Conclusão: peixinhos geneticamente autistas são os únicos que
seguem a recomendação britânica de Ficar Calmo e Seguir Adiante.
Pergunto ao Rui se eles têm alguma evidência de que a imunidade
ao estresse alheio é prejudicial a alguém, o requisito para algo ser
qualificado como "distúrbio".
Rui adoraria poder responder, mas não
pode: o experimento necessário envolveria expor seus peixes a predação, o que o
comitê de ética não permitiu.
Mas imagino que logo em seguida eles foram
almoçar um bom bacalhau...
SUZANA HERCULANO-HOUZEL - bióloga e neurocientista da Universidade
Vanderbilt (EUA).