A sobriedade me trouxe de volta
a convivência com quem gosto tanto
Por anos engoli o álcool sozinha com minhas angústias e dores, sem
ninguém mais para falar.
No ano passado, assim que
a Covid permitiu, estive em Salvador com
uma amiga que, embora relativamente nova, já tem uma importância enorme na
minha vida. Fomos à casa de Jorge Amado e Zélia Gattai, no Rio Vermelho, onde
li "Amizade é o sal da vida. Quem tem amigos tem tudo", de autoria do
escritor.
Essa consideração me emocionou demais, me fez pensar em cada alegria
presente naquele local. Nos inúmeros hóspedes que eles receberam, nas recepções
que ofereciam aos amigos.
Saí de lá com uma sensação boa, dessa atmosfera de
parceria e amizade. Uma casa cheia de vida.
Escrevo isso porque um sintoma
da minha doença era a solidão.
Durante muito tempo
alcoolizada, me afastei dos amigos e fiz coisas desastrosas que resultaram em
pelo menos um rompimento definitivo, como ocorreu com a Ana, aquela amiga próxima que não me convidou para seu
casamento (já contei a história por aqui).
Mas hoje não quero
falar das perdas, e sim da vida que tenho em companhia de amigos muito
queridos.
A sobriedade me trouxe de volta
a convivência com pessoas de que gosto muito e que me ajudam a viver todas as
questões boas e tristes que enfrento.
Neste exato momento estou passando por
uma questão muito delicada na minha vida pessoal e fico pensando como era viver
sem poder desabafar, receber abraços, carinhos e chamegos de quem amo.
A amizade é uma parceria sem a
qual eu realmente não vivo. Tanto que por mais de anos quase morri muitas vezes, engolindo com álcool
minhas angústias e dores.
Não tinha mais ninguém para falar, não conseguia
expressar meus sentimentos, e assim não aliviava as dores que são comuns a
todos os seres humanos.
À medida que me abro e cultivo elos essenciais, vou
percebendo que não sou a única a passar por experiências desagradáveis: muitas
pessoas vivenciam tristezas como as minhas, e hoje me acalmam e me contam como
foi para elas atravessar o tormento.
Compartilhar, que é prática também comum
no AA, ajuda a atenuar o peso da vida.
Visitar a casa de Jorge Amado
também foi importante para me lembrar de quanto a leitura foi e é uma parceira
que me ajuda a sair da realidade quando esta é cruel.
Está aí uma fuga
saudável. Então, naquela residência do casal de escritores mais conhecido do
Brasil, me dei conta de alguns rituais importantes, como a leitura.
Para se ter
uma ideia, nos primeiros dias de recuperação eu não conseguia ler nem um
parágrafo. Começava mas não entendia. Voltava-não-fazia-sentido-parava.
Também
não era capaz de escrever nada com sentido. As palavras ficavam soltas,
desconjuntadas, sem nexo.
Hoje isso tudo me parece uma
doideira, agora que escrevo sobre minhas vivências e me sinto tão viva...
Consigo ter um raciocínio para estruturar um texto.
O álcool em excesso atrapalhou a minha
cabeça de um jeito sem precedentes. Leio também histórias de mentes brilhantes
que sofrem dessa doença, e muitas não acham o caminho.
Sabe por quê?
Na minha
opinião, é porque na nossa cultura não é legítimo ser alcoólatra, não é
divertido não beber. (Já ouvi de um paquera que meu único defeito era que eu
não bebia).
Muitas vezes as pessoas me
contam, às gargalhadas, de vexames que cometeram alcoolizadas. Sim, existe um
glamour, uma aura divertida na figura do bêbado.
Não vejo graça nenhuma. Alguns
dias atrás minha amiga me mandou uns vídeos do YouTube que mostravam um senador
da República visivelmente alterado.
Não posso afirmar que ele estava bêbado,
mas me pareceu. É lamentável não só ver as cenas que vi como também os memes e
piadas.
É uma doença. É triste demais ver isso acontecendo e se prolongando sem
que ninguém interceda.
Volto a lembrar que não sou
contra o álcool, não levanto bandeira para a proibição. Pelo contrário, que bom
que muita gente pode viver bem com a bebida. Mas eu não posso e não sou a
única.
Demorei horrores para aceitar que consumir álcool é uma merda para mim.
E tenho certeza de que a pressão que sinto em sobriedade, como a frase do
paquera, faz com que muita gente que apresenta problemas com o álcool não
queira deixar a bebida. Sou solidária a essas pessoas.
Já frequentei muitas casas que
têm apreço pelos amigos e pela cultura, mas não fui capaz de curtir porque
estava muito louca.
E hoje percebo que a loucura, a loucura boa, vem de
experimentar fazer tudo de cara limpa, segurando um copo da minha água com gás.
Experimento e vivencio momentos como aquele em Salvador, junto com minha nova
mas grande amiga Tuca. Sou feliz de dormir consciente e acordar com mais
vontade de conhecer outros lugares como aquele. Se não bebo, tenho a opção de
planejar e realizar muitas coisas.
A bebida destruiu todos os meus
sonhos, triturou todos eles que nem o moinho na música do Cartola. E eu quero
continuar vivendo essa realidade que experimento hoje, que tem literatura e tem
as mais belas amizades.
Eu sou amada, aliás, nunca deixei de ser, mas durante o
período mais violento contra mim criei espinhos para que ninguém chegasse
perto. A vida é boa com água e sombra.
ALICE S. – Vida de Alcólatra, jornal FSP