Eis uma coisa que a gente já
deveria ter aprendido com as últimas décadas de pesquisa em primatologia: é no
mínimo temerário sair por aí dizendo que determinado comportamento é (atenção
para as aspas) "exclusivamente humano".
Os dogmas a esse respeito vivem
caindo por terra: fabricação e uso de ferramentas; tradições culturais; senso
de justiça; política maquiavélica –o rol de coisas complexas que só a nossa
espécie seria capaz de fazer já perdeu todos esses itens e vários outros. Por
enquanto, linguagem articulada e rituais simbólicos ainda são exclusividade do
Homo sapiens, mas o segundo item talvez esteja muito perto de ser riscado da
lista, por culpa dos suspeitos de sempre, os chimpanzés.
Essa, ao menos, é uma
interpretação possível para um dos artigos científicos mais misteriosos que eu
já li nos últimos 15 anos. O estudo saiu na revista "Scientific
Reports" e resume um ano e meio de coleta de dados África Ocidental afora,
um esforço coordenado pelo suíço Christophe Boesch, do Instituto Max Planck de
Antropologia Evolucionista, na Alemanha. O enigma: chimpanzés que atiram
pedras. Sério.
"O comportamento não foi
visto em todos os bandos estudados. Apenas quatro populações de chimpanzés
possuem essa fixação por atirar pedras. Elas estão espalhadas por florestas da
Guiné, da Costa do Marfim, da Libéria e de Guiné-Bissau (um dos raros países do
mundo onde se fala português e há chimpanzés selvagens, aliás)."
Não haveria nada de enigmático
nessa história, lógico, se os macacos estivessem atirando os ditos fragmentos
rochosos nas fuças de um coleguinha que detestam, ou num apetitoso antílope de
pequeno porte que desejam devorar. A questão é que alguns dos bichos, quase
todos machos adultos da subespécie Pan
troglodytes verus (ou
chimpanzés-ocidentais), arremessam as pedras contra troncos de árvores, e às
vezes dentro de ocos de pau.
O processo é acompanhado de uma
vocalização ofegante - é aquele "uh, uh, uh" que você já deve ter
visto chimpanzés emitirem em algum documentário da TV a cabo –e dos pelos
eriçados que caracterizam bichos nervosos ou com raiva. Mais esquisito ainda é
o fato de que os animais fazem isso quando não há nenhum outro primata por perto
(as imagens do comportamento foram feitas com armadilhas fotográficas, que
disparam automaticamente, ou seja, não é uma reação a primatólogos
bisbilhoteiros).
Outro fator intrigante: a mesma
árvore costuma ser escolhida por diversos macacos diferentes, de modo que uma
pilha de pedras vai se acumulando encostada ao tronco ou dentro da parte oca da
planta. E, para cúmulo da esquisitice, é comum que um chimpanzé pegue uma pedra
do montinho, faça sua encenação berrando "uh, uh, uh" e então atire a
pedra de volta na pilha.
Como chimpanzés não falam, é
brutalmente difícil, se não impossível, saber que diabos se passa na cabeça dos
bichos quando estão se comportando desse jeito. Uma possibilidade mais chã é
que os macacos estejam apenas fazendo uma espécie de exibição de dominância (do
tipo "quem manda aqui sou eu") de longe –as pedras ajudariam o som a
se propagar pela mata.
Outra, mais
"viajante" é que de alguma maneira as pilhas de pedras sejam palco de
uma forma rudimentar de ritual. De fato, elas têm uma semelhança suspeita com
"cairns" (o termo vem do gaélico e não tem tradução), montes de pedra
que marcam santuários, túmulos e divisões da paisagem no mundo todo, inclusive
na África. Pode até ser que o fenômeno deixe um registro arqueológico, como ocorre
com humanos. A esta altura do campeonato, é bom se manter aberto a todas as
interpretações, inclusive as mais malucas.
Reinaldo José Lopes - jornalista de ciência com graduação,
mestrado e doutorado pela USP. É autor do blog "Darwin e Deus" e do
livro "Os 11 Maiores Mistérios do Universo".
Fonte: site UOL