Física
O futuro já aconteceu e o tempo é uma
ilusão
A diferença entre passado, presente e
futuro é apenas uma persistente ilusão…”, Albert Einstein.
Você sabe o que vai fazer hoje à noite? Faz idéia
de como vão ser os seus bisnetos? E o dia da sua morte? Para a ciência, tudo
isso já foi resolvido. E seu livre-arbítrio não existe
Existe um lugar mágico, onde o tempo não passa no
mesmo ritmo pra todo mundo. Nenhum relógio marca a mesma hora. E o futebol é um
caos. Enquanto um torcedor vê o Ronaldo deles partindo para a grande área com a
bola dominada, outro já viu o gol acontecer. Para alguns, o jogo ainda nem
começou; para outros, já aconteceu há 50 anos. Um nó.
Num mundo desses, o que ainda é futuro para você já
estaria gravado na memória de outro. Seu filho pode nem ter nascido. Mas para o
vizinho da direita ele já tem seis anos. Para o da esquerda, 20, e acaba de ser
contratado pelo Real Madrid. Quer dizer, você pode ainda nem ter resolvido se
vai ou não usar um contraceptivo hoje à noite. Mas não tem o que fazer: em 20
anos vai ser pai de um jogador milionário. Se isso já aconteceu para outra
pessoa não tem mais como ser mudado. O que é passado já está escrito, certo?
Então o futuro também está. E a liberdade de escolha, a sensação de
livre-arbítrio, não passa de ilusão nesse lugar de futuro fixo. As pessoas têm
tanto poder para determinar seu amanhã quanto uma pedra tem para escolher o
dela.
Esse mundo, por sinal, foi desvendado em 1905 por
um funcionário público alemão, e, nos últimos anos, vem inspirando algumas das
teorias científicas mais radicais da história. Coisas que deixam qualquer
ficção no chinelo.
Ah, mais dois detalhes: o nome do tal descobridor é
Albert Einstein. O do lugar mágico, nem precisa dizer: a gente vive nele.
O sonho de Einstein
Vive sim. Só não temos esse problema com jogos de
futebol e vizinhos que moram no futuro porque as maluquices do tempo na
realidade que a gente enxerga são infinitesimais. Mas todas as propriedades do
“mundo mágico” estão aqui mesmo: no fundo, nenhum relógio marca a mesma hora,
ninguém vive o mesmo presente.
Ou, como disse o alemão numa carta de 1955: “A
distinção entre passado, presente e futuro é só uma ilusão, ainda que
persistente”. Mas por que ilusão? Poucas coisas são mais concretas que a
passagem do tempo. A gente nasce sabendo que as horas passam no mesmo ritmo pra
mim e pra você, que corremos para o futuro juntos. Mas Einstein descobriu que
não: no mundo de verdade a gente viaja pelo tempo toda hora. Seu próprio corpo
é uma máquina do tempo. Bem menos potente que o De Lorean de De Volta para o
Futuro, mas é. Einstein explicou que o tempo não é uma coisa etérea, mas um
lugar. Uma dimensão por onde a gente caminha sem parar. Tipo: enquanto você
está sentado, lendo esta revista, os segundos continuam passando, certo? Então
é como se você cruzasse o tempo num trem invisível agora mesmo.
Até aí, nada demais. Agora é que vem a sacada: o
alemão estipulou que esse trem anda a uma velocidade que pode ser medida em
“quilômetros por hora”: exatamente 1,08 bilhão de km/h, a velocidade da luz.
E viu algo mais perturbador ainda: tempo e espaço
são basicamente a mesma coisa. O casamento dos dois forma uma paisagem
invisível: a do espaço-tempo. Então agora mesmo você pode dizer que está
correndo à velocidade da luz através desse espaço-tempo. Claro que todo o 1,08
bilhão de km/h está sendo usado para mover só o tempo mesmo. Mas que você está
a essa velocidade agora, está.
Mas tem um problema: para Einstein, nada pode
atravessar o espaço-tempo mais rápido que a luz. Então se você já corre a 1,08
bilhão de km/h na “metade tempo” dessa paisagem, não tem de onde tirar
velocidade para a “metade espaço”.
Mas espera aí. E se você levanta pra pegar um copo
d`água? Vai precisar de uns 5 km/h na “metade espaço” para andar até a cozinha,
certo? Essa velocidade tem de sair de algum lugar. Mas de onde? Da única fonte
disponível: os motores que empurram o tempo.
Então você tira 5 km/h de lá pra andar até a
cozinha. E a velocidade com que você atravessa o espaço-tempo fica redistribuída:
10 km/h vão para o espaço e 1,07999… bilhão de km/h para a do tempo. A
velocidade do tempo funciona que nem um banco. Ela empresta quilômetros por
hora para tudo o que se move. Mas essa agiotagem tem preço: faz seu relógio
perder velocidade. O tempo começa a passar mais devagar para você. E é aí que o
mundo mágico de Einstein começa a dar as caras.
Olha um exemplo de verdade: sentado na poltrona,
você atravessa o tempo a 1,08 bilhão de km/h, já que seu trem está correndo a
todo vapor, ok? Isso significa que 30 segundos vão passar em 30 segundos mesmo,
sem mistério. Mas aí você arruma um Porsche e resolve sentar o pé na estrada.
Chega a 180 km/h, por exemplo. Para Einstein, isso quer dizer que você pegou
180 km/h emprestados lá do banco do tempo.
Então seu relógio fica andando mais lento: um
período que durava 30 segundos cravados quando você estava imóvel vai ter
passado em exatamente 29,99999999999952 segundos. Enquanto a Porsche acelera
você, ela freia o seu relógio. Mas só o seu. Do lado de fora do carro a
velocidade do tempo continua igual. E o resultado é insólito: depois de uma
hora com o pé embaixo no carro você vai ter envelhecido 0,0000000576 milésimo
de segundo a menos do que tudo o que está lá fora. Isso mesmo. Seu relógio
“biológico” também andou mais devagar. Tudo envelheceu um pouco mais rápido que
você. As pessoas, as pedras, o Sol, a galáxia de Andrômeda… Tudo. E em que
“lugar” tudo é mais velho do que hoje? No futuro. Depois de uma hora a 180
km/h, você viaja 0,0000000576 milésimo de segundo para o futuro.
Mas caramba. Tanta falação pra chegar nessa
merreca? Pois é. O problema é que as velocidades que a gente vive no dia-a-dia
são pequenas demais. Não dá para perceber esse efeito minúsculo delas sobre a
passagem do tempo. Nem astronautas que já experimentaram velocidades de 40 000
km/h conseguiram fazer um rombo marcante no relógio deles. O crédito de 1,08
bilhão de km/h é generoso.
Mas quando a velocidade aumenta muito, o empréstimo
começa a fazer diferença no caixa. Se esse Porsche andasse a mais ou menos 1
bilhão de km/h, por exemplo, o seu “banco do tempo” entra à beira da falência.
Agora o mundo mágico aparece de vez.
Assim: imagine que alguém esteja num bar de beira
de estrada. Chega um ladrão. São 12h15 e o bandido está nervoso, com um revólver
apontado para o rosto do cara, pronto pra atirar. Então você passa com o Super
Porsche pela rodovia, a 1 bilhão de km/h. Nesse momento, seu relógio também
marca 12h15. Então o que você enxerga pela janela quando passa em frente ao
bar? O homem sendo ameaçado? Não.
Os 1 bilhão de km/h fizeram o tempo passar mais
devagar para você, lembra? Quando o seu relógio marcar 12h15 já vão ser 12h30
lá fora! A velocidade maior fez o seu tempo dar uma bela freada. Só o seu, note
bem. O do resto do mundo continuou correndo no ritmo de sempre. Você foi
ultrapassado pelo tempo. Em outras palavras: viajou para o futuro.
Então o que você enxerga quando passa em frente ao
bar? Um cadáver. Ou o bandido preso… Seja o que for vai ver uma coisa que, para
o homem que está com um revólver na fuça, ainda não foi decidida.
Esse é o paradoxo: você e o rapaz ameaçado estão
vivendo o mesmo instante. Um momento que os dois chamam de “agora”. Mesmo
assim, o que para ele é futuro é uma coisa que já está gravada na sua memória.
Faz parte do seu passado.
E dá para ir mais longe. Einstein mostrou que
distâncias muito grandes também acabam com a idéia de que exista um “agora”
igual para todo mundo.
Para alguém em outra galáxia, por exemplo, o
momento em que você lê essa página pode ser entendido agora mesmo como um
passado distante (veja quadro na próxima página). “A concepção dele sobre o que
existe neste momento no Universo pode incluir coisas que parecem completamente
abertas para nós, como o vencedor das eleições presidenciais dos EUA de 2100.
Os candidatos ainda nem nasceram, mas na idéia dele sobre o que acontece
exatamente agora já vai estar o primeiro presidente americano do século 22”,
escreveu o físico Brian Greene, da Universidade Columbia, nos EUA, em seu livro
The Fabric of the Cosmos (O Tecido do Cosmos), inédito em português. Parece
estranho, mas para a ciência o ponto de vista de alguém num carro a 1 bilhão de
km/h ou em outra galáxia é tão válido quanto o seu. Se ele é teoricamente
possível, não pode ser desprezado.
E aí vem o ponto crucial. Se dá para dizer que o
nosso futuro já aconteceu. Que poder a gente tem para escolher como vai ser o
dia de amanhã? Onde vai parar nosso livre-arbítrio?
“Desaparece. O universo de Einstein, o da Teoria da
Relatividade, não aceita a liberdade de escolha. O jeito como as nossas vidas
se desdobram, do nascimento até a morte, está mesmo escrito. As escolhas que
ainda vamos fazer já estão impressas no tecido da realidade. Tão impressas
quanto as escolhas que a gente fez no passado” diz o filósofo especializado em
física Oliver Pooley, do Centro de Filosofia da Ciência da Universidade Oxford,
na Inglaterra.
Não podemos fazer nada pra mudar o destino. Ok. Mas
se coisas como o rosto dos seus netos e o dia da sua morte estão “impressas” na
natureza desde sempre, seria exagero pensar que, algum dia, a ciência poderia
usar a matemática e a física para prever isso e tudo o mais? “Não teria como.
Mesmo que cada evento do futuro seja baseado numa fórmula matemática já
determinada, e é o que eu acredito, não daria para a gente saber quais fórmulas
são essas antes que os próprios eventos acontecessem”, considera o físico
Gerardus Hooft, da Universidade de Utrecht e vencedor do Nobel de física de
1999.
“Nenhum computador teria como decifrar a natureza,
já que nada pode computar mais rápido que o Universo”, completa o holandês.
Sir Roger Penrose, da Universidade de Oxford e
considerado o maior especialista em Relatividade do planeta, concorda: “Mesmo
que o mundo seja completamente determinado, como diz a teoria, ele certamente
não é computável”.
É isso aí: os horoscopistas podem tirar seus
cavalos da chuva. Pelo jeito, o futuro vai continuar no breu, por mais que já
esteja escrito em algum lugar.
Mundos paralelos
Mas tudo é determinado, então? Não exatamente.
Existe mais um mundo mágico, onde o tempo e o espaço não fazem sentido. Um jogo
de futebol por lá, aliás, seria ainda mais bizarro que o do mundo de Einstein:
quando o Ronaldo de lá parte com a bola dominada, ele se divide em 10, 20, 30
Ronaldos. E cada uma dessas cópias chega ao gol por um caminho diferente.
Mas aí vem o pior: nenhum torcedor consegue ver
esse milagre da multiplicação. Cada um enxerga um único jogador, dando uma
única arrancada.
E agora, a bomba: nosso mundo também funciona desse
jeito. Mas, pra tristeza das aspirantes a Daniela Cicarelli, só na escala das
coisas absurdamente pequenas, a das partículas subatômicas. “Sub” mesmo: se um
átomo fosse do tamanho da Terra, um elétron não seria maior que uma bola de
futebol.
A realidade de partículas que nem o elétron, a da
física quântica, segue uma lógica que não faz sentido aqui no mundo das coisas
grandes: tudo vive em um monte de lugares ao mesmo tempo. Se você fosse uma
partícula subatômica, teria cópias-fantasma suas em Nova York, Paris e Plutão
neste momento. Vocês estariam em lugares diferentes mais seriam a mesma pessoa,
com a mesma consciência.
Isso só não acontece porque as bizarrices do
universo quântico não existem no mundo das coisas maiores – o dos átomos
inteiros, moléculas, planetas…
É como se a nuvem de cópias-fantasma das partículas
fosse esmagada pelo “peso” das coisas grandes.
Essa nuvem, afinal, é o que há de mais delicado e
indeterminado. Os próprios equipamentos usados para detectar partículas acabam
com ela. E tudo o que os cientistas conseguem ver quando tentam olhar para a
nuvem de cópias-fantasma é uma partícula solitária. Essa sobrevivente aparece
em qualquer parte da nuvem, num lugar impossível de prever. E seus clones
somem, como se tivessem sido só parte de um sonho.
Ou não. Muitos físicos acham que o nosso mundo é
tão onírico quanto o subatômico. Para eles, quando algum pesquisador tenta
olhar as infinitas partículas-fantasma da nuvem quântica e só consegue ver uma,
não é que as outras evaporaram: é que o cientista se dividiu em cópias
infinitas, espalhadas por universos paralelos! Exatamente. É o que diz a teoria
dos Mundos Múltiplos, moldada pelo físico norte-americano Hugh Everett em 1957.
Ela diz que, se a partícula solitária que surgiu daquela nuvem de clones pode
aparecer aqui, lá ou acolá, você também pode. Uma versão de você em um universo
vai encontrar a partícula aqui. Outra, em um segundo universo, encontra ela lá.
Uma terceira, acolá. Sem limite nenhum.
A idéia é que a gente vive numa infinidade de
universos, cada um com a sua realidade particular. E o conjunto desses cosmos
pode ser chamado de “Multiverso”: um lugar onde tudo o que pode acontecer vai
acontecer. Tudo mesmo. Se você encontrou alguém atraente numa festa, por
exemplo, e não teve coragem de puxar conversa, pode ter certeza que, em algum
universo paralelo, uma cópia sua chegou nela. E levou um fora. Num terceiro, a
cantada deu certo. Num quarto mundo paralelo, vocês se casaram. E por aí vai:
com um sem-número de universos, as possibilidades da vida também seriam
infinitas.
Viu o que a gente tem aí? Um futuro aberto pra
qualquer coisa. Justamente o que a Teoria da Relatividade não aceita. “Nem a
Relatividade nem qualquer outra teoria em que uma decisão leva a um só
resultado são compatíveis com o livre-arbítrio. Já o Multiverso, com seus
inúmeros mundos, não tem esse problema”, diz o físico inglês David Deutsch, da
Universidade de Oxford, maior defensor da teoria hoje.
Bom, o que ninguém imagina é como a liberdade de
escolha funcionaria nesse cenário sem bater de frente com Einstein. Uma
hipótese, levantada por Greene, é que nós “pularíamos” entre um e outro
universo paralelo cada vez que uma decisão fosse tomada. Tipo: se você resolve
cantar aquela pessoa da festa, vai parar em um universo onde essa é a realidade
já escrita. Se ela dá bola, vocês partem para um cosmos onde os dois ficam
juntos.
Como esses pulos transcendentais aconteceriam?
Ninguém imagina. “O certo é que os conceitos de identidade pessoal e de
livre-arbítrio teriam de ser interpretados num contexto mais amplo, já que
infinitas cópias de você e de mim estariam espalhadas por universos paralelos”,
escreveu o físico em seu livro.
Você decide
A teoria está aí, bonitinha. Mas cadê a prática?
Bom, o jeito mais viável de tentar provar que os universos paralelos existem
mesmo, segundo os apoiadores da teoria, é verificar se outras formas de matéria
se comportam de um jeito tão bizarro quanto as partículas subatômicas, pelo
menos em laboratório. Ou seja: ver se coisas realmente grandes também podem
ficar em vários lugares ao mesmo tempo.
Para alguns, isso seria como fazer as cópias que
moram em outros cantos do Multiverso aparecerem por alguns segundos. Mais:
deixaria claro que nossa identidade pessoal pode mesmo se repartir por uma
infinidade de universos paralelos. Não faltam tentativas de fazer algo assim. O
físico austríaco Anton Zeilinger, pioneiro nesse tipo de experiência, e que já
colocou moléculas grandes, formadas por dezenas de átomos, em mais de um lugar
ao mesmo tempo, estuda fazer isso com um vírus. Cientistas renomados, como Max
Tegmark, do MIT, acham que isso pode provar a viabilidade dos universos
paralelos. Para eles, se os vírus tiverem alguma forma primitiva de
consciência, essa “mente” deles apareceria repartida em vários mundos. Daí para
repetir a experiência com um corpo maior, como o meu ou o seu, seria questão de
tempo.
Fechou, não? Para vários físicos ouvidos pela
Sapiens, não mesmo. O próprio Zeilinger é contra a idéia: “Pra mim, colocar
luz, átomos ou até bactérias vivas em vários lugares ao mesmo tempo não prova
nada sobre universos paralelos. Essa teoria, aliás, me parece mais uma
tentativa desesperada de aplicar nosso conceito de realismo ao mundo quântico.
Só isso”. O austríaco está em boa companhia: “Penso que a estrutura dos mundos
múltiplos só exista por um tempo infinitesimal. Muitos consideram que o colapso
deles é uma ilusão ou algo assim. Eu não: do meu ponto de vista, ela é expulsa
da realidade por um processo físico real”, diz Penrose.
Mas a teoria tem partidários de peso, como o alemão
Dieter Zeh, que formulou boa parte da física quântica moderna: “É
psicologicamente difícil para a maior parte dos cientistas aceitar
interpretações como a dos universos paralelos. Mas acho que ainda não existem
muitas possibilidades de derrubar essa hipótese”, afirma o cientista, da
Universidade de Heidelberg. Só que até David Deutsch está entre os que acham
“psicologicamente difícil” lidar com a teoria, pelo menos quanto ao poder que
ela tem de abrir portas para o livre-arbítrio: “O Multiverso pode ser
compatível com a liberdade de escolha, mas não consegue explicá-la. Não acho
que estamos sequer perto de entender o que é, no fim das contas, o livre-arbítrio”.
E você? De que lado fica? Toda a liberdade de
escolha do mundo está aí pra você decidir. Ou não.
Alexandre Versignassi - http://super.abril.com.br/comportamento/o-futuro-ja-aconteceu/