O banco é um macho nu, sempre pronto para dar o bote


O banco é um macho nu, sempre pronto para dar o bote

Ao trocar de banco, cometi erro atrás de erro, confundida pela tecnologia avançada e solitária a ponto de chorar.

Trocar de banco, na tentativa de diminuir cobranças de taxas e fugir do fictício rendimento da poupança, da falsa correção monetária, da ilusão do crédito, é como trocar de monstruosidades.

No processo de troca de banco, cometi erro atrás de erro, confundida pela tecnologia avançada, solitária demais na minha rudimentar capacitação para operar no mundo informatizado: tão solitária a ponto de chorar.

O banco humilha. O banco está nu e oculto pela arquitetura do aplicativo, por trás do processamento dos dados da virtual cliente. 

Como se encabulado, e para não chocar, ele se esconde, nu. 

E age como um voyeur: exigiu um autorretrato da selfie-cliente, um de frente e outro de perfil. Não quer saber da existência física da pessoa. 

Relaciona-se à distância, na realidade apenas hermético-digital, codificada em senhas e confirmações em mais de uma etapa.

Não está nem aí para a pessoa em carne e osso —pelo contrário, recomenda privacidade e criptografias no relacionamento com a token-usuária, preservação em pastas secretas, para que ninguém descubra. 

Instalado na intimidade dos aparelhos celulares, o banco é pornográfico-seguro, uma arapuca online, um software que se finge de suave, mas que, na verdade, paga ("remunera") o quanto quer, cobrando taxas e juros extorsivos, como um cafetão explorador.

Altamente tecnológico, valoriza a inovação, o risco, a agilidade, a velocidade, o protagonismo —ignora os sem-tecnologia da informação, a lentidão das gerações mais velhas, o desconhecimento e a inacessibilidade dos pobres, dos sem-nada.

Na sua sanha acumuladora de lucros sobre lucros, na sua usura exacerbada, e dizendo, na sua linguagem financista, que o capital não tem pátria, o banco vai extorquindo o salário, este que, sim, é nacional-brasileiro, pauperizado até a miséria.

Na sua frieza de engrenagem, na sua hostilidade de máquina sequestradora de cartão de crédito e com sua inteligência artificial, o banco vai traçando o design da distopia: robotizado, aposta no individualismo, na não pessoa por trás do link, no androide replicante sem alma humana.

O banco inflaciona a epidemia de solidão deste "século solitário", como diz a economista britânica Noreena Hertz, século do distanciamento, dos smartphones, da economia sem contato.

As raízes mais profundas de nossa atual crise de solidão, afirma Noreena, estão na revolução neoliberal dos anos 1980 e nos princípios implacáveis do livre mercado, que, ao dar licença à ganância e ao egoísmo, reformulou fundamentalmente não apenas as relações econômicas como também nossas relações uns com os outros.

O banco é imoral —não age para construir um país habitável, para implantar uma sociedade solidária. 

Pelo contrário, é insaciável, está empanzinado de lucro e fortuna (enriqueceu até o fastio, como dizia Darcy Ribeiro) à custa do trabalho do povo.

Trocar de banco foi um verdadeiro tormento, um mergulho cego numa plataforma de identificação, autenticação e captura à distância, na virtualidade alienante de uma "tech" monstruosa. Não sei em que caixa preta o banco jogou minha selfie de frente e de perfil.

Para onde foi meu autorretrato? 

Para qual arquivo digital? 

Quem é o banco? 

O que é um token e, mais ainda, um token não fungível

Onde foram parar meus dados? 

Eles são fungíveis? 

Como processaram meus documentos? 

O nome da minha mãe, por exemplo, como escreveram? 

O banco escreve? O banco insensível teria ouvido meu choro?

Como um homem nu, pronto para dar o bote, na sua voragem por mais e mais carteiras do mercado, e usando de todas as suas técnicas de camuflagem e marketing, o banco me construiu artificialmente (virei um autômato que tira fotos de si mesmo), estudou as condições materiais da minha existência, minha liquidez, minha capacidade monetária, de investimento, de empréstimo. 

E me catalogou no perfil final dos sem-riqueza, daqueles para quem a prosperidade é inalcançável.

Não se vê, mas o banco é macho —atua à vontade no terreno do falocentrismo, da violência típica do masculino que agride, rouba, assalta, assedia, provoca guerras e mata. 

O banco é feio e cresceu para cima de mim como um macho grosseiro, de barriga abaulada de tanto que se empanturrou de cifras bilionárias. 

O banco é central e incontrolável monopólio, de um gigantismo tal que o país se apequena, encolhe submisso frente a ele.

O banco é um macho nu, pronto para dar o bote e que, no que se refere a mim, uma infeliz como eu, sem dinheiro nem criptomoeda, sem valores na Bolsa e que, portanto, não é ninguém neste Sul Global —quanto a mim, uma selfie-mulher usuária desajeitada e pobretona, o que o banco faz é especular diariamente sobre o modo mais automático de me estuprar todo mês.

MARILENE FELINTO - Escritora e tradutora, autora de “As Mulheres de Tijucopapo”.

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