O abridor imaginário


Quem propuser uma Previdência de capitalização terá de explicar como bancar a transição.

Um físico, um químico e um economista estão numa ilha deserta, com latas de comida salvas do naufrágio, mas sem o abridor. Os dois primeiros sugerem métodos para abrir as latas baseados em suas especialidades, ambos, porém, impraticáveis. Cabe ao economista anunciar que tem a solução para o problema: "Supondo que temos um abridor de latas...".

A piada é antiga, mas surpreendentemente atual no nosso contexto, em particular no que diz respeito à reforma da Previdência. Economistas, tanto os ligados a Ciro Gomes como os a Jair Bolsonaro, defendem a transição do atual regime previdenciário, de repartição —em que os trabalhadores hoje ativos transferem recursos aos aposentados — para capitalização —em que cada pessoa recebe como aposentada aquilo que poupou ao longo de sua vida.


A vantagem no caso seria a virtual impossibilidade de déficits, desde que o sistema seja bem desenhado: como cada um recebe apenas o que poupou, não há, por definição, insuficiência de recursos que obrigue o governo a cobrir a diferença entre a arrecadação e o gasto (na verdade, como também se propõe que haja um regime de repartição para os de menor renda, há a possibilidade de algum déficit, mas bem menor que o atual).

Como é que ninguém pensou nisso antes?

A verdade é que muita gente pensou; apenas, ao contrário desses economistas, não supôs que possuísse um abridor de latas.

O cerne da questão é simples. Se pudéssemos começar um sistema previdenciário do zero, provavelmente montaríamos um regime de capitalização; o problema é que não podemos!

Considerando apenas o INSS, há cerca de 30 milhões de aposentados e pensionistas, que receberam nos últimos 12 meses algo como R$ 570 bilhões (aproximadamente R$ 1.460/mês). Esse valor é (parcialmente) bancado por 52,5 milhões de contribuintes, que recolheram R$ 381 bilhões no mesmo período, considerando tanto a parcela dos segurados como das empresas que os empregam (mesmo encargos que são "pagos" pelas empresas acabam recaindo em larga medida sobre os trabalhadores na forma de salários mais baixos). O resultado é um déficit de R$ 189 bilhões, coberto pelo Tesouro Nacional.

Caso, porém, houvesse a mudança para o regime de capitalização, as receitas atuais cairiam, pois os trabalhadores ativos passariam a depositar suas contribuições em contas individuais, o que aumentaria o déficit do atual regime.

É verdade que a atual geração de aposentados desaparecerá (perdão, mas faz parte da condição humana), porém, enquanto isso não acontecesse, o Tesouro Nacional teria de bancar a transição. Seu custo exato depende de muitas variáveis (até mesmo a redução do teto das aposentadorias, tema do qual os candidatos fogem mais rápido do que o diabo da cruz), mas a discussão é acadêmica, pois o Tesouro (mesmo descontado o resultado do INSS) não é superavitário o suficiente para cobrir a perda de receita.

É possível usar truques para mascarar as alternativas, mas não há como fugir delas: redução no valor das aposentadorias remanescentes no regime de repartição, aumento de tributos e elevação da dívida, ou, mais provavelmente, uma combinação dos três.

A conclusão é inescapável: quem propuser uma reforma previdenciária nesse sentido tem também de deixar muito claro como pretende bancar o custo da transição. Se não o fizer, pode estar certo de que possui um abridor de latas imaginário...

Alexandre Schwartsman - consultor, ex-diretor do Banco Central (2003-2006). É doutor pela Universidade da Califórnia em Berkeley.

Fonte: coluna jornal FSP


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