Bitcoin vira
moeda em El Salvador
Temor é que adoção sirva como passe livre para uso na lavagem de
dinheiro.
A notícia entusiasmou quem aposta nas criptomoedas. El Salvador tornou-se o primeiro país do mundo a dar
curso forçado para o bitcoin.
Tornou a criptomoeda uma moeda mesmo (e não apenas
um ativo), que a partir de agora deve ser aceita em todos os pagamentos do
país, dos bancos ao supermercado.
Além disso, como moeda, não está sujeita a
tributação por ganho de capital na sua valorização ou desvalorização.
Parece uma boa notícia, mas a realidade é bem mais complicada.
El Salvador é o segundo país mais
violento do mundo, com uma taxa de homicídios de 66 assassinatos por 100 mil
habitantes.
As instituições democráticas que caracterizam o Estado de Direito
vêm sendo demolidas desde o ano passado, a partir do momento em que o
presidente dominou os três Poderes no país.
Mais do que isso, o território de El Salvador é dominado por milícias,
como a Mara Salvatrucha (MS-13) e a Barrio 18, ambas com ramificações
internacionais que chegam aos EUA.
Dentre suas atividades, está o tráfico de armas, drogas e pessoas.
O
Partido Republicano americano cita com frequência essas milícias como uma das
razões pelas quais os EUA deveriam adotar um controle mais rigoroso da
imigração latina e das fronteiras.
Integrantes da MS-13 foram acusados, por
exemplo, de decapitar um homem e arrancar seu coração em um parque público,
perto de Washington.
O temor é que a adoção do bitcoin como moeda sirva como passe
livre para seu uso na lavagem de dinheiro internacional e no fortalecimento do
poder dessas organizações criminosas no país.
Curiosamente, quase todas as notícias que trataram da adoção do
bitcoin por El Salvador ignoraram por completo esse triste contexto,
provavelmente fascinados pela novidade (dis)utópica.
Se antes organizações internacionais se preocupavam apenas com a derrocada da
democracia e com a escalada da violência no país, agora as preocupações
abrangem também o setor financeiro.
O FMI foi rápido em dizer que “a adesão ao bitcoin como moeda
corrente apresenta inúmeros problemas macroeconômicos, financeiros e legais”.
El
Salvador estava justamente em busca de um empréstimo de US$ 1 bilhão do FMI,
que agora está sendo revisto.
Não demorou para que os mais entusiasmados com a notícia
começassem a passar o chapéu na comunidade das criptomoedas em busca de
levantar o bilhão de dólares para o país, com uma campanha denominada “f... the
IMF”.
No mundo de hoje, tudo é possível. Mas o gosto amargo depois da
euforia inicial da notícia começou a tomar conta mesmo daqueles que ficaram
mais animados com ela.
Afinal, na prática, o uso massificado do bitcoin é hoje
praticamente impossível.
Primeiro porque não tem escala. O bitcoin consegue
processar apenas cerca de 4,6 transações por segundo, ante 1.500 por segundo da
Visa, por exemplo.
Além disso, o custo de cada transação está em cerca US$ 8, e a
volatilidade da criptomoeda é gigantesca.
Desse modo, dificilmente o bitcoin
vai ser usado pelo cidadão comum. Já por organizações criminosas com
ramificações internacionais esse uso é bem mais provável.
RONALDO LEMOS - advogado,
diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.
Fonte: coluna jornal FSP