Sono revolucionário


Quem nunca ficou acordado na internet até altas horas da madrugada? No começo dos anos 2000, fazer isso dava uma sensação especial. Era como fazer parte de um clube. Afinal, naquela época havia menos de 10 milhões de usuários da rede. Tudo era experimental, até os programas de comunicação (como o ICQ, precursor do Skype e até do WhatsApp), que não tinham sequer propósito comercial definido. Avançar pela madrugada nessas condições era desbravar um território novo de comunicação.

Corte para 2015. Há hoje mais de 100 milhões de usuários da rede no Brasil. Ficar acordado à noite na internet deixou de ser prática com qualquer caráter transgressor, mas há uma multidão de pessoas que abdica do sono todas as noites para continuar olhando para a tela do computador ou do celular.

Dormir cada vez menos por causa da rede virou o novo normal.

Uma abundância de hashtags celebra essa prática: #teamnosleep, #teaminsomniac ou #bondedamadrugada. Nos EUA, a Common Sense Media apontou que um adolescente típico passa mais tempo no dia consumindo mídia (9 horas) do que dormindo (7 horas). Detalhe: nessa fase de desenvolvimento, a quantidade de sono diário recomendado é de 8,5 a 10 horas.

As horas dedicadas ao sono estão sendo cada vez mais "mineradas" pelas mídias sociais. O fenômeno não é novo. Há estudos que mostram que o surgimento dos talk shows na TV americana, exibidos a partir das 23h, foram responsáveis por diminuir a quantidade de sono entre jovens e adultos.

Só que, perto do poder da internet, esse impacto é risível. Há uma competição global por atenção –uma hora a mais com o usuário acordado é uma hora adicional para ele ver anúncios, alimentar redes sociais, distribuir likes e coraçõezinhos ou outras atividades que geram receitas para alguma empresa.

Com isso, o aspecto "contracultural" de ficar acordado transformou-se no seu avesso. Em vez de gesto boêmio, trocar o sono pela rede é fazer hora extra no proletariado da atenção. É continuar a produzir em detrimento do próprio repouso.

Não por acaso, o professor da Universidade Columbia Jonathan Crary chama a atenção para o caráter revolucionário do sono nos nossos dias. Em seu livro "Capitalismo Tardio e os Fins do Sono" (Cosac Naify), ele argumenta que o ato de dormir se torna uma afronta para a engrenagem de produção atual.

O jovem professor suíço Dirk Nicolas Wagner publicou um interessante artigo chamado "The Tragedy of the Attentional Commons" (a tragédia da atenção como bem comum). Ele argumenta que nossa capacidade de atenção é um bem comum como o ar ou a água. Só que esse bem está sendo poluído com distrações e se degradando. Não é só o ambiente que se deteriora, mas também nossos espaços mentais. Tal como Minas Gerais, nossa atenção está sendo minerada de forma insustentável.

Ronaldo Lemos - advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITSrio.org);  doutor em direito, pesquisador e representante do MIT Media Lab no Brasil.

Fonte: jornal FSP

Tel: 11 5044-4774/11 5531-2118 | suporte@suporteconsult.com.br