Há quem diga que o carnaval e o futebol fazem a melhor síntese
do Brasil. Pode-se acrescentar, com os mesmos argumentos, que o quadro fica
mais completo e equilibrado se incluirmos nessa moldura a religião. Porém,
sempre é bom lembrar que não estamos observando diretamente a sociedade
brasileira, mas sua expressão na mídia, o que se torna essencial porque, como
sabemos, todo o conteúdo do ambiente comunicacional está se transformando
progressivamente num simulacro da realidade.
Há, portanto, um carnaval real, que se passa na interação entre
o estado de espírito que vai da alegria exagerada, pura sensação, a suas
expressões corporais através da dança, dos saltos, dos rodopios, da disposição
para o prazer. Há também o futebol real, que acontece na expectativa de cada
partida, na tensão das jogadas extremas, na explosão do gol – evento feliz para
uns, tristeza para outros. Da mesma forma, a religião possui uma realidade, que
se resume na busca íntima de uma relação privilegiada com a divindade e se
realiza socialmente nas comunidades de crentes.
Mas aqui falamos dessas realidades quando passam pelo filtro da
mídia, pois é nesse processo que se constrói o simulacro de sociedade através
do qual tentamos entender a sociedade em si. Nesse ambiente específico, que
funciona como uma outra dimensão da vida, carnaval, futebol e religião
sintetizam o gosto brasileiro pelas sensações extremadas, mas são meras
alegorias do carnaval, do futebol e da religião reais.
A questão é: quando a mídia interpreta essas alegorias, devolve
uma versão distorcida ao campo da realidade, num processo contínuo que, em
algum momento, vai provocar rupturas. Na vida real, não no simulacro.
Há
muitos exemplos na rotina da imprensa. Na quarta-feira (18/2), podemos apanhar
uma reportagem de página inteira publicada pela Folha de S. Paulo para
ilustrar esse fenômeno. O assunto é a manchete do jornal, que diz o seguinte:
“Impunidade é regra em brigas de torcidas em SP”. O pano de fundo é a partida
entre Sport Club Corinthians Paulista e São Paulo Futebol Clube, em torno da
qual se discute a conveniência de promover jogos com uma só torcida no estádio.
Estimulando
os valentões
O texto faz um apanhado das mortes produzidas em confrontos de
torcidas organizadas, no território paulista, para demonstrar que a Justiça não
alcança os brigões nem mesmo quando eles produzem vítimas fatais: apenas três
torcedores, dos milhares que se envolveram em centenas de casos nos últimos dez
anos, estão na cadeia. Todos os três são corintianos, acusados de participar do
assassinato de um torcedor do Palmeiras, ocorrido em agosto do ano passado, e
estão em prisão preventiva aguardando julgamento.
O último caso grave que resultou em condenação ocorreu em 1995,
e colocou um palmeirense na cadeia, em 1998, pela morte de um torcedor do São
Paulo. Ele cumpriu pouco mais da metade de uma sentença de doze anos de prisão
e foi colocado em liberdade.
A reportagem parece movida pela ótima intenção de alertar as
autoridades e dirigentes esportivos para o risco da partida marcada para a noite
de quarta-feira, quando Corinthians e São Paulo se defrontam pela primeira vez
em um jogo da Copa Libertadores da América. O jogo abre a fase de grupos, e
apenas um dos dois times prosseguirá na competição.
Estão dados, portanto, os requisitos para uma disputa acirrada
dentro de campo, mas é fora dele que se desenrola o outro enredo, do qual trata
o jornal paulista.
O ponto central da reportagem questiona: os organizadores
deveriam permitir apenas torcedores do Corinthians, mandante da partida, no
estádio? Como a imprensa considera que todo assunto tem apenas dois lados, há
um artigo a favor, outro artigo contra a proposta.
Mas a realidade tem outros elementos. A começar da verdadeira
dimensão da violência entre torcedores: em dez anos, brigas envolvendo torcidas
organizadas no estado de São Paulo provocaram “ao menos onze mortes”, diz o
jornal. Ou seja, a letalidade desses conflitos é relativa, comparada a outras
causas. Por exemplo, morrem mais pessoas em quatro dias de carnaval do que em
um ano com duas partidas de futebol por semana. No entanto, o assunto ganha
muita repercussão na mídia e tem valido proveitosas carreiras políticas a
autoridades que defendem medidas restritivas à liberdade de expressão e
associação.
Há
recursos tecnológicos e legais para identificar e controlar os indivíduos
propensos à violência, sem estragar o espetáculo do futebol. Outra questão
subjacente nasce da própria manchete: ao anunciar que ninguém é punido por
causa de brigas entre torcedores, a Folha não estaria
estimulando os valentões?
Como se vê, detalhes tão pequenos mostram que a imprensa já não
dá conta de retratar a sociedade.
Luciano Martins Costa - Jornalista e escritor,
autor, é produtor e apresentador do programa Observatório da Imprensa.
Fonte: site Observatório da Imprensa