A edição da revista Super Interessante, dezembro/2014, publica
alguns dados estatísticos relacionados com a fortuna dos ultra ricos do mundo,
assim por ela denominados, confirmando tudo quanto o capitalismo e seus
defensores procuram negar:
“Os verdadeiros donos do mundo. A economia mundial vive a maior
crise em 80 anos. Ela destruiu milhões de empregos e impede o crescimento da
maioria dos países. Ao mesmo tempo, o número de bilionários dobrou, e as
fortunas deles também.”
67 – sessenta e sete pessoas apenas, note-se bem – são donas de uma
fortuna igual ao que 3,5 bilhões de pobres possuem de dinheiro, ou seja, a
metade da população mundial. Bill Gates, sozinho, dono de 80,8 bilhões de
dólares, iguala o dinheiro de 17,2 milhões de indianos, compara a revista.
Os efeitos disso em todo o mundo e no Brasil crescem todos os
dias ocupando publicações diversas sobre dados, projeções, vaticínios e
opiniões de especialistas sobre o que afeta a nossa economia. Não é de admirar.
Pela natureza mesma da tendência implacável de se concentrar e multiplicar em
poucas mãos, sobra cada vez menos a ser partilhado do “bolo” da riqueza que os
defensores do capital nunca deixaram de pregar como um bom efeito dessa forma
de acúmulo de dinheiro, poder e influência. Quem é pobre ou miserável esqueça a
mais valia da sua contribuição para o aumento do bolo, entre na fila e aguarde
com esperança. Vem aí a abundância.
Não dá mais para acreditar nisso, aí residindo o mérito maior da
Super Interessante de dezembro passado. Ela mostra que os efeitos das chamadas
crises do sistema capitalista são crises de efeitos sociais os mais injustos,
mas não para quem é dono do capital. O poder de quem acumula dinheiro sobre
toda a atividade política, governos e leis, a força de impedir todo o empenho
contrário à conveniência de reproduzir sem limite essa concentração, inclusive
por meio de fusões de empresas, e o peso de sua influência no que se relaciona
com a carga de impostos comprova o fato:
“No Brasil, são notórios os casos de empresas ou de milionários
que dão dinheiro para financiar partidos políticos: são as controversas doações
de campanha. Nas últimas eleições, elas ultrapassaram a marca de R$ 1 bilhão,
segundo o TSE. As dez empresas que mais doaram (JBS, Bradesco, Itau, OAS,
Andrade Gutierrez, Odebrecht, UTC Engenharia, Queiroz Galvão, Vale e Ambev)
financiaram 70º de todos os deputados federais eleitos – 360 de quinhentos e
treze, segundo levantamento do jornal O Estado de São Paulo.”
Pondera depois a mesma revista: “Os ultra ricos nem sempre
exercem seu poder na política ou no mercado financeiro. Eles também influem
sobre as coisas que você compra. Os produtos e serviços são fornecidos por um
número cada vez menor de empresas – porque elas estão se juntando umas as
outras. Entre 2002 e 2005, o Brasil teve uma média de 384 fusões e aquisições
por ano, segundo estudo da Consultoria Price Waterhouse Coopers (PwC). De 2006
a 2009, essa média subiu para 646. De 2010 a 2013, chegou a 783.”
Mesmo que a Super Interessante ressalve nem todas as fusões de
empresas serem ruins, isso é bem raro, se for observada a economia do mundo
todo: “Pesquisadores do Instituto Federal de Tecnologia da Suíça, em Zurique,
estudaram as 43 mil maiores empresas do mundo – e mapearam todas as relações
entre elas. Descobriram que um grupo muito pequeno manda numa parte enorme da
economia global. “1% das empresas controla 40º de toda a rede”, diz James
Glattfelder, um dos autores do estudo.”
Sobre a carga tributária: “Os impostos. Quando pensamos neles,
costumamos pensar no governo: o dinheiro que ele arrecada e os serviços
públicos, como saúde e educação, que fornece em troca. O que pouca gente sabe é
que, no Brasil, os ricos pagam proporcionalmente menos impostos (grifos da
revista) do que o resto da sociedade. Soa incrível, mas é verdade. Um estudo do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) mostra o que acontece. Uma
pessoa que ganha dois salários mínimos por mês gasta 53,9% da sua renda com
impostos, que estão embutidos nos produtos que ela compra. Tem de trabalhar 197
dias por ano só para pagar impostos. Já alguém que recebe 30 salários mínimos
paga apenas 29% – e trabalha 106 dias, quase a metade do tempo, para sustentar
o governo. Isso acontece porque, ao contrário do que acontece em países
desenvolvidos, os impostos brasileiros estão mais concentrados nos produtos que
as pessoas compram, e não no dinheiro que elas ganham. E essa característica é
uma máquina de produzir desigualdade: porque os impostos tomam mais dinheiro
daqueles que menos têm.”
Esse problema aumenta na medida em que o alarmismo da mídia
sobre uma realidade tão dura não se faz em torno dessa injusta e escandalosa
desigualdade, nem da exclusão social fatalmente gerada pelo modo de produção
capitalista. Bem ao contrário, as manchetes se ocupam preferentemente de como
amenizar os efeitos das crises econômicas sem tocar nas suas causas, mais ou
menos como conservar o bode dentro de casa desde que ele não cheire tão mal:
“não vamos crescer” “vai faltar investimento”, “é urgente se estabelecerem
renúncias fiscais”, “o Estado precisa garantir melhor a liberdade de
iniciativa”, “estamos perdendo em competitividade”, “a globalização dos
mercados veio para ficar e nós estamos atrasados nisso” “o PIB está caindo e
isso é de responsabilidade exclusiva do governo”.
Permita-se a quem não é versado em economês, como é o nosso
caso, procurar discernir onde, em qualquer dessas manchetes, existe algum sinal
de preocupação com a urgente necessidade de os ricos ganharem menos e os pobres
ganharem mais, de os ricos não garantirem a segurança dos seus negócios
mandando até nas leis pelo financiamento de campanhas eleitorais de políticos
e, por um tal meio, não haver o risco de a carga tributária brasileira, de que
os mesmos se queixam tanto, ser tão pesada para os pobres.
Taxa Tobin, imposto progressivo, tributação de fortunas,
ampliação do controle e da punição de monopólios, de cartéis e dumpings, tudo
isso, como se sabe, é estudado e proposto para, quando menos, fazer com que
essa vergonhosa concentração de riqueza não prossiga aumentando a injustiça
social que ela cria e reproduz, lidando indiferente com a vida, a cidadania, a
dignidade e a liberdade da maioria do povo. Ela se impõe de um modo pernicioso,
desiguala, oprime, engana, explora pessoas, depreda a natureza, envenena a
terra e, em nome do mercado, auto justifica a sua visceral imoralidade.
A histórica falta de garantias devidas aos direitos sociais
encontram aí a sua causa. Estancada uma tal hemorragia de veias abertas, como
já disse Eduardo Galeano, o sangue de uma economia efetivamente solidária na
qual o suficiente para todas/os não pudesse mais ser sacrificado pelo
conveniente e imposto por alguns/as, irrigaria o corpo da humanidade inteira. A
possibilidade concreta de construção dessa alternativa, estudada e testada em
alguns pontos do planeta, como os Fóruns sociais mundiais que Porto Alegre e
outras cidades do país e do mundo testemunharam, não abandonou o empoderamento
da sua viabilidade.
Quanto mais alta essa utopia, maior o mérito do empenho em lutar
por ela. Como a pomba (da estratégia) e a serpente (da tática), lembradas por
Jesus Cristo no evangelho, ela voa alto para ver por onde vem o lobo do egoísmo
e da ganância, e, junto à terra, espreita o melhor momento de apanhá-lo pelo
focinho.
Jacques Távora Alfonsin – advogado com especialização em Direito Civil, professor da
Universidade Vale dos Sinos / RS
Fonte: site
rsurgente.wordpress.com/2015/01/04/o-venenoso-acumulo-do-dinheiro/