Algo a fazer, algo a antecipar, alguém para amar
Um romance de
estrada que captura a essência da vida.
Tenho sempre ao menos três livros abertos ao mesmo
tempo: o não ficção da vez, que eu só leio durante o dia, tomando notas (porque
não ficção é sempre trabalho para meu cérebro, inclusive, e ultimamente
sobretudo, quando o assunto é economia, política, comida ou tecnologia); o de
ficção que alguém lê para mim no Audible enquanto eu dirijo ou faço algo com as
mãos; e o de ficção que eu leio na cama para adormecer.
Este último é de preferência bem bobinho, mas o bom
dos livros é que mesmo livro bobinho faz a gente pensar, sobretudo quando é
livro lido e não ouvido.
Livro impresso a gente lê no tempo da gente, repetindo
o parágrafo, lembrando das nossas próprias histórias, pensando nos outros,
voltando as páginas quando a mente passeia longe demais, os olhos veem e o
cérebro lê, mas não entende (é, é perfeitamente possível: um cérebro
alfabetizado e bem treinado identifica palavras automaticamente, mas atribuir
significado a elas são outros quinhentos).
Parte da riqueza de um livro está nas suas páginas,
mas uma parte bem grande está no que a gente encontra dentro da gente ao longo
da leitura.
Donde a pobreza da maioria dos vídeos que andam por aí nas mídias
antissociais, nhoc-nhocs mastigados e cuspidos em 30 segundos ao som de alguma
musiquinha obrigatória, entretenimento descartado e esquecido assim que o dedo
rola a tela.
Por isso, o fato de livros continuarem vendendo —e
em livrarias, imagine!— me dá esperança na humanidade.
As pessoas ainda não
desaprenderam a ler nem perderam o interesse por conteúdo de verdade, escrito
por gente e do tipo que captura anos de seus pensamentos, vivências e
aprendizados, e faz a gente pensar e sentir.
Exemplo: no livro bobinho da vez, "The Road To
Tender Hearts" (a estrada para corações moles), a autora Annie Hartnett
injeta uma frase que ao mesmo captura a essência do livro e faz todo sentido
neurocientífico.
A frase vem no meio do livro, que é a história de um carteiro
aposentado, sua filha, duas crianças recém-órfãs e um gato que é meio anjo da
morte viajando em busca de uma ex-namorada e um pai biológico.
Mencionada como
um conselho lembrado, a frase na vida real era o conselho predileto de um
personagem da infância da autora: "todo mundo precisa ter algo a fazer,
alguém para amar, e algo a antecipar".
O ex-carteiro não tinha nenhuma dessas três coisas
que, lendo já meio adormecida, eu me dei conta de que formam o tripé da
felicidade, neurocientificamente falando.
O cérebro é uma máquina não de detectar estímulos,
mas de fazer coisas e ficar satisfeito com o resultado do próprio esforço.
Não
ter qualquer problema por resolver é um problema que o cérebro sente que
precisa ser resolvido encontrando um problema: algo a fazer.
Parte das coisas que o cérebro faz são ações que a
gente direciona para satisfazer não a gente mesmo, e sim aquelas poucas pessoas
que são tão importantes para a gente como a gente mesmo: quem a gente ama.
Encontrar alguém para amar enche a gente de sentimentos que fazem a gente se
sentir vivo e querer mais da vida —como novos horizontes e oportunidades para o
cérebro.
E quem quer mais está, por definição, cheio de esperança, antecipando
coisas boas por vir, se a gente se mexer para fazer acontecer.
Querer mais, portanto (quem diria!), é uma coisa
boa.
SUZANA HERCULANO-HOUZEL - bióloga e
neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA