Jornalista não é robô


Recentemente, num congresso acadêmico em uma universidade pública do Rio de Janeiro, uma mesa de debates reuniu jornalistas e profissionais de órgão de mídia discursando para um público de professores, estudantes e pesquisadores, numa tentativa de aproximar academia e mercado – esses dois universos frequentemente acusados de serem demasiado distanciados um do outro. Entre os palestrantes, estava o diretor da versão brasileira de um prestigiado jornal digital estrangeiro, convidado a falar sobre o aproveitamento do conteúdo colaborativo em sua redação.

Em certo ponto, o convidado começou a descrever o perfil desejável de jornalista que espera contratar, enumerando as qualidades essenciais em seu ponto de vista:

“Primeiro, precisamos ter claro que acabou a divisão de tarefas no jornalismo da era digital: não tem mais isso de só apurar, ou só tirar foto. O jornalista que queremos apura, escreve, tira foto, edita vídeo, posta em redes sociais, monitora comentários, dá feedback ao leitor. Temos uma equipe de nove pessoas – dez, contando comigo – que se desdobram em todas as funções. Em nossa redação, os perfis pessoais de cada jornalista em redes sociais, como Twitter e Facebook, são obrigatoriamente integrados ao trabalho e linkados pelo nosso site. A pessoa não separa mais vida pessoal e profissional na rede. É preciso estar disposto a trabalhar 24 horas por dia, sete dias por semana” .

Provocada pelo receituário draconiano, uma estudante de pós-graduação fez uma pergunta sobre o salário, questionando se todo esse trabalho multiplicado à exaustão é, pelo menos, remunerado de forma adequada. A resposta do palestrante foi brutal:

“Não, não: na verdade, tem é de dar graças a Deus por ainda ter emprego”.

Sob os protestos da plateia, o diretor do jornal online não se intimidou e iniciou, em tom de desabafo, uma diatribe contra o ensino universitário de jornalismo, borrifando suas queixas tanto sobre as faculdades privadas quanto públicas.

“Sinto muito, mas é preciso reconhecer que a universidade está a anos-luz de atraso em relação ao mercado. Minha filha faz jornalismo em uma faculdade renomada de jornalismo em São Paulo, que não vou dizer qual é, e outro dia chegou em casa me mostrando o que está aprendendo nas aulas de Jornalismo Online. Eu comecei a rir, porque aquilo era uma piada, um conteúdo que não serve para nada. A universidade precisa ensinar o jornalista preparado para o que o mercado exige. O jornalista precisa aprender a ser gente, aprender a ser funcionário, aprender a respeitar hierarquia e a obedecer ordens”.

“Pronto, falei”, arrematou.

Quebrando um silêncio desconfortável na plateia, pediu a palavra uma professora veterana, também jornalista de carreira, que coordena o curso de especialização em comunicação digital da principal universidade paulista. Fez uma espécie de reprimenda: “Gostaria de dizer que a universidade não é tão ruim assim. A universidade cumpre o seu papel. Porque a universidade forma profissionais que saibam trabalhar, sim, mas também ensina a pensar. A universidade ensina o profissional a refletir, de forma crítica, sobre o seu próprio trabalho. E gostaria de lembrar a você o lugar onde você está”, disse, referindo-se ao fato de o palestrante, naquele momento, estar em um evento realizado dentro de uma universidade pública, falando para um público acadêmico.

Nada intimidado, o executivo de aquário partiu para outro exemplo pessoal, talvez numa tentativa de comprovar sua argumentação da inutilidade do ensino universitário.

“Eu pendurei um doutorado meu na USP porque percebi que não me serviria de nada”, disse ele.

“Que bom. Que bom não termos você por lá, porque não queremos esse tipo de desrespeito. Não nos faz a menor falta”, respondeu ela.

Apuração primária

O que fez a professora, nessa hora aplaudida, foi mais que um desagravo em nome da comunidade acadêmica. Ela condensou um sentimento generalizado nas faculdades de jornalismo, que exprime uma exaustão pelo fato de a instituição de ensino da profissão ser frequentemente criticada, nem sempre de forma justa, pelo mercado. É que a tese da defasagem entre este a aquela pode ter sido verdadeira – ou pelo menos verificável em vários casos – durante bastante tempo, mas não serve mais para descrever a situação predominante, pelo menos não nas principais universidades públicas e algumas das principais particulares (as PUCs, notavelmente).

Na semana retrasada, alunos de jornalismo da Escola de Comunicação da UFRJ lançaram um Laboratório de Financiamento Coletivo para Jornalismo, uma iniciativa experimental de jornalismo online sustentado por crowdfunding – uma das principais tendências do mercado, ainda que fora do âmbito corporativo da grande mídia. O projeto partiu de demanda dos próprios estudantes e foi prontamente bem recebido e incorporado pela direção da escola.

Na USP, o curso de Gestão Integrada da Comunicação Digital nas Empresas, o Digicorp, recorrentemente recebe gestores corporativos para atualizar os alunos e pesquisadores com as tendências mais recentes do mercado. A UFBA, em Salvador, é pioneira nos estudos de jornalismo na internet com o GJOl (Grupo de Pesquisa em Jornalismo Online), que acompanha estratégias aplicadas em sites inovadores e é uma das principais referências no Brasil e em Portugal em produção acadêmica sobre o tema. O Labic (Laboratório de Estudos em Imagem e Cibercultura) da UFES, em Vitória, rendeu diversas pautas na grande imprensa no ano passado por desenvolver uma métrica de hashtags e análise de conteúdo em mídias sociais durante as manifestações que varreram o país.

Em minhas aulas mesmo na UFF, em Niterói, discuto com os alunos a progressiva migração dos conteúdos jornalísticos da interface web (tudo que vem no formato HTML) para os aplicativos de plataformas móveis, com outras potencialidades (por exemplo, os dados de geolocalização e a integração de informações do usuário com seus contatos de redes sociais) e outros desafios (como a atualização ainda mais intensa do que nos portais). O trabalho final da disciplina de jornalismo online, que eles executaram com criatividade, foi elaborar e montar um produto jornalístico digital em formatos variados, desde um aplicativo para celular até canais de videorreportagens no YouTube.

Tudo isso demonstra que a academia vem, sim, se atualizando e formando os futuros jornalistas em compasso com o que eles encontrarão nas redações, já nos estágios (que cada vez mais exigem o manejo de mídias sociais, por exemplo, como um requisito profissional), mas sempre imprimindo a esse ensino um aspecto crítico, como salientou a professora. Não formamos robôs: formamos seres humanos que não apenas “obedecem ordens”, mas interpretam orientações editoriais, seguem pautas, apuram por conta própria e não precisam estar dispostos a trabalhar em escala “24 por sete” nem dar graças aos céus por salários indignos. Os jornalistas que saem graduados das boas universidades brasileiras não são máquinas: eles são formados para operar as máquinas e, com elas, produzir a notícia.

De volta às aulas

Essa é a tarefa da universidade na formação profissional, no que não faz jus às críticas de “defasagem”. Pelo contrário: há exemplos de situações em que o mercado é que deixa a desejar ao jornalismo.

Na última semana da Copa do Mundo, o portal G1 publicou, por duas vezes – ênfase na reincidência – textos à guisa de matéria jornalística que destacavam resultados dos jogos do Brasil obtidos em simulações feitas por eles em... videogame (ver aqui e aqui). Os redatores do G1 rodaram partidas do jogo FIFA 2014, da Electronic Arts, em modo automático, e publicavam o placar como fato, a despeito da absoluta irrelevância para a realidade. Ambos tiveram chamada na home do portal. A continuar assim, em breve vão jogar partidas de games de estratégia como Civilization e Age of Empires para analisar o noticiário internacional da crise no Iraque ou da ofensiva de Israel em Gaza.

Esse tipo de coisa é o mercado que manda o jornalista fazer. A universidade não ensina isso, não.

Questões como estas são recorrentes na relação entre ensino e prática, educação e trabalho, reflexão e operação, e que tanto mercado quanto academia lutam para compreender, apreender e digerir de forma útil. As duas instituições, entretanto, exercem papéis muito distintos na sociedade. O criticado “atraso” da universidade pode não ser uma defasagem real entre pesquisas e práticas, mas sim um reflexo dessa função social de formar não apenas para repetir o que já é feito, mas permitir que os estudantes de jornalismo pensem formas de fazer diferente. A universidade não é, nem pretende ser, uma fábrica de funcionários autômatos. O mercado tampouco é, nem pretende ser, o espaço de reflexão crítica, ainda que ambientes de trabalho venham tentando mudar. O ensino da técnica continua fundamental, o que faz com que o diploma de formação em jornalismo, ainda que não seja mais obrigatório pela lei, continue sendo pré-requisito exigido pelo próprio mercado.

É essa função distinta que o mercado precisa entender, antes de reclamar. Ou então levará lições de moral como essa dada no peixe de aquário – o tipo de lição que faz ver a necessidade de voltar à carteira de sala de aula.

Pedro Aguiar - jornalista e professor de jornalismo no Departamento de Comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde ministra, entre outras, disciplinas de Jornalismo Online

Fonte: site Observatório da Imprensa

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