IA na apuração da
taxa de desconto atuarial
Em avaliações
atuariais de benefícios pós-emprego, a taxa de desconto constitui um dos
elementos mais críticos e tecnicamente complexos de todo o processo de
mensuração.
Sua função de trazer a valor presente os fluxos de caixa futuros
faz com que pequenas variações produzam impactos relevantes sobre o passivo
atuarial.
Na prática profissional, a escolha dessa taxa é constantemente
submetida a escrutínio por parte de auditores e patrocinadores — não apenas por
seu efeito financeiro, mas pela necessidade de que ela seja consistente com a
realidade do mercado e com os preceitos normativos em vigor.
No Brasil, de
acordo com o pronunciamento contábil CPC 33(R1) – convergente com a norma
internacional IAS 19 – a taxa de desconto deve refletir, na data do balanço, os
rendimentos de mercado de títulos de alta qualidade de crédito, com vencimentos
compatíveis com os prazos dos pagamentos esperados dos benefícios.
Em países
como Estados Unidos e membros da União Europeia, essa orientação é
operacionalizada por meio de curvas construídas com base em títulos
corporativos com rating elevado (AA ou superior), emitidos por empresas de
setores diversos e com significativa liquidez no mercado secundário.
Aqui, no entanto,
não dispomos de um mercado de títulos corporativos suficientemente profundo e
líquido para atender a essas exigências.
A consequência prática é a adoção, de
forma consolidada e aceita, de curvas baseadas exclusivamente em títulos públicos
federais — notadamente os indexados ao IPCA (como as NTN-B) — como referência
única e legítima para a apuração da taxa de desconto.
Essa limitação
regulatória e estrutural impõe um desafio: como aprimorar a qualidade técnica
da estimativa da taxa de desconto num contexto em que a base de dados é
restrita, e o mercado de referência não apresenta risco de crédito compatível
com o que se busca mensurar?
Ao longo dos últimos anos, essa questão tem
mobilizado discussões entre atuários e as empresas patrocinadoras. É nesse
contexto que a inteligência artificial (IA) desponta como uma ferramenta com
potencial futuro para transformar a prática, desde que o mercado evolua para
comportar sua aplicação plena.
Atualmente, o uso
da IA na determinação da taxa de desconto em avaliações atuariais brasileiras
é, essencialmente, inviável sob a ótica da composição dos dados — dado que não
há liberdade técnica ou normativa para selecionar curvas derivadas de instrumentos
que não sejam os títulos públicos federais.
No entanto, isso não invalida a
relevância da discussão. Pelo contrário: uma eventual mudança estrutural no
mercado financeiro brasileiro — com o surgimento de um segmento corporativo
mais robusto, com emissões regulares, ratings consistentes e ampla liquidez —
poderá criar as condições necessárias para que a IA se torne uma aliada efetiva
na estimação desse parâmetro.
Em mercados
desenvolvidos, a aplicação da IA nessa seara é crescente. Nos Estados Unidos,
grandes consultorias atuariais já utilizam modelos de aprendizado de máquina
para ajustar curvas construídas com base em títulos corporativos AA.
Essas
curvas são derivadas de dados de mercado secundário, com critérios de exclusão
de outliers, ajuste de liquidez e interpolação spline ou polinomial.
Modelos
supervisionados são utilizados para identificar padrões entre os spreads de
crédito e variáveis macroeconômicas como inflação, taxa básica de juros e
atividade setorial.
Na Europa, a EIOPA implementa
uma estrutura baseada na taxa livre de risco ajustada por volatilidade e
extrapolada com base no Ultimate Forward Rate (UFR).
Algumas consultorias atuam com algoritmos de decomposição de fatores latentes e
aprendizado não supervisionado para modelar componentes ocultos das curvas de
juros de longo prazo.
Essa sofisticação técnica, aliada à disponibilidade de
dados de alta granularidade, favorece o uso de IA não apenas para prever
curvas, mas para incorporar a elas expectativas econômicas complexas e
variações condicionais à conjuntura de mercado.
Retornando ao
cenário brasileiro, é preciso reconhecer que a base normativa atual impõe
contornos bastante claros à atuação do atuário. Ainda que seja tecnicamente
possível — e até desejável — estimar uma taxa de desconto a partir de curvas
corporativas, essa prática não é permitida pelos órgãos reguladores, justamente
pela ausência de um mercado que permita inferências estatísticas confiáveis a
partir de dados observáveis.
Toda iniciativa que envolva títulos privados, no
contexto das avaliações de benefícios pós-emprego, está sujeita à rejeição em
auditoria.
Todavia, essa
realidade pode ser transitória.
O amadurecimento do mercado de capitais,
incentivado por reformas regulatórias e pelo crescimento da demanda por
financiamento de longo prazo fora do sistema bancário, tende a gerar maior
diversidade e profundidade nos instrumentos de dívida corporativa.
Nesse
cenário prospectivo, será possível considerar — de forma tecnicamente
defensável e normativamente válida — o uso de curvas construídas com base em
títulos privados como referência primária para a taxa de desconto atuarial.
Quando esse estágio for
alcançado, a inteligência artificial encontrará um terreno fértil para ser
aplicada com amplitude.
Modelos supervisionados, como gradient boosting e redes neurais profundas,
poderão ser treinados com dados históricos de emissões corporativas, spreads
setoriais e premissas macroeconômicas para projetar curvas de desconto
dinâmicas, com maior capacidade de resposta a mudanças de cenário.
Técnicas de
séries temporais com LSTM (Long Short-Term Memory) permitirão estimativas mais
estáveis, com baixa sensibilidade a ruídos de curto prazo.
Além disso,
modelos generativos — como os GANs (Redes Adversárias Generativas) — poderão
ser utilizados para simular curvas de juros corporativas sob múltiplos cenários
econômicos, permitindo análises probabilísticas da taxa de desconto e
aumentando a qualidade da análise de sensibilidade das obrigações atuariais.
A
IA poderá também ser empregada para detectar distorções estatísticas em bases
de dados, eliminar ruídos e melhorar a interpolação entre vencimentos, aspectos
fundamentais para a construção de uma estrutura a termo sólida.
Embora, no
presente, as limitações normativas impeçam a adoção direta desses métodos no
Brasil, é essencial que a comunidade atuarial antecipe esse debate.
A
preparação técnica deve preceder a viabilidade operacional. Atuários que
dominem as técnicas de ciência de dados, análise estatística multivariada e
modelagem preditiva estarão mais bem posicionados para liderar a transição
metodológica que inevitavelmente acompanhará a evolução do mercado.
Finalizo este
artigo com uma percepção amadurecida na prática profissional: a precisão da
taxa de desconto não depende apenas da fonte de dados, mas também da
sofisticação com que esses dados são tratados.
Quando o Brasil dispuser de um
mercado de crédito corporativo digno de representar o risco de longo prazo dos
planos de benefícios, a inteligência artificial poderá ser a ponte entre o dado
bruto e o pressuposto atuarial tecnicamente refinado — sempre em alinhamento
com os princípios de consistência, prudência e neutralidade que regem a
profissão atuarial
ANDRÉA MENTE - atuária e sócia da Assistants