O cérebro na hora da morte
Último sopro de
atividade é compatível com consciência, mas é preciso morrer para ver e crer
Olha a neurociência se metendo na nossa morte, além
de tudo o que já faz pela vida humana: um registro oportunista da atividade
cerebral de um idoso que morreu subitamente em seu leito de hospital, sob
monitoramento completo, confirmou o que já se sabia valer para...ratos morrendo
controladamente em laboratório.
O estudo ganhou menção no jornal O Globo de domingo
(21/07) como se fosse coisa nova, e o Instagram está desde então em polvorosa
com o assunto, mas novidade o estudo não é mais —o artigo em questão foi
publicado em fevereiro de 2022 no periódico Frontiers in Aging
Neuroscience.
Mas como eu também perdi a notícia quando ela era
novidade, aqui vai.
A
notícia: a 30 segundos da parada cardíaca, minutos após a última série de
convulsões cerebrais, quando o coração já batia errado, comprometendo o
abastecimento energético do cérebro, a atividade do cérebro do idoso, em vez de
se dissipar, se converteu a ondas elétricas rápidas, na frequência dita gama,
que em pessoas saudáveis são sinal de...consciência.
E mais: já em parada
cardíaca, quando toda a atividade cerebral rapidamente cessa, os primeiros 30
segundos ainda assim mostravam alguma atividade gama.
As
ondas gama, rápidas e de pequena amplitude elétrica, indicam atividade neuronal
localizada em pequenos grupos dinâmicos dentro do cérebro (como pequenas
rodinhas de conversa), em vez da atividade lenta, sincronizada pelo cérebro
inteiro e de grande amplitude (como todas aquelas rodinhas agora berrando a
mesma coisa). Somente o primeiro estado é compatível com a complexidade da
experiência consciente.
Portanto,
embora a persistência e até aumento das ondas gama não sejam garantia de que o
senhor em questão estivesse consciente do seu estado de morte em progresso, o
achado é perfeitamente compatível com um estado de consciência de...alguma
coisa, muito provavelmente reativando os registros internos do próprio cérebro.
É o que fazemos quando fechamos os olhos e nos isolamos das influências do
ambiente: o cérebro não para de funcionar, ele apenas muda a fonte da sua
atividade, de fora para dentro.
Acontece
que esses registros internos são o que chamamos de memórias.
No cérebro
morrente, fazendo recurso das suas últimas reservas de glicogênio na falta de
oxigênio trazido por sangue fresco, faz todo sentido que o último surto de
atividade ignore os sentidos, caros demais para serem levados em consideração
quando o orçamento míngua, e favoreça o que fala mais forte: aquelas conexões
cerebrais reforçadas repetidamente ao longo da vida, que são nossas memórias
mais queridas.
Claro
que o registro da morte deste senhor, agora compartilhado com o mundo por
cortesia da sua família, pode não ser um caso representativo.
Mas um estudo
feito dez anos atrás mostrou que ratos morrendo em laboratório passam por
exatamente a mesma sequência de eventos.
Morremos tal qual os ratos,
provavelmente; a diferença é que, com mil vezes mais neurônios corticais, temos
muito mais e mais complexas memórias reativáveis no fim da vida, como um último
"hoorah".
Quem
viver verá, dizem, assim como dizem que é preciso ver para crer. No caso da
experiência da morte, o único evento absolutamente garantido para todos nós, é
preciso morrer para saber.
Que seja a última experiência neurocientífica da
minha vida: essa eu não quero perder por nada.
SUZANA HERCULANO-HOUZEL - bióloga e neurocientista da Universidade
Vanderbilt (EUA).