Ressurreição digital: é ético, legal e saudável
falar com mortos via inteligência artificial?
Prática de recriar
entes queridos falecidos usando IA gera dilemas sobre identidade, consentimento
e no papel da memória no processo de luto
Damián Tuset
Varela | Pesquisador em Direito
Internacional Público e IA. Tutor de Mestrado em Relações Internacionais e
Diplomacia na UOC (Universitat Oberta de Catalunya)
Um episódio de um programa de televisão provocou um
amplo debate público e profissional há alguns meses.
Nesse programa, várias pessoas foram expostas a recriações digitais das
vozes de seus parentes falecidos geradas por IA (inteligência
artificial) a partir de áudios reais.
Essas recriações não apenas imitavam as
vozes, mas também faziam perguntas sugestivas, provocando reações emocionais
intensas nos participantes.
O fenômeno, que pode ser chamado de
"ressurreição digital", envolve a recriação de aspectos de pessoas
falecidas usando tecnologias avançadas.
Embora possa oferecer um consolo
momentâneo, essa prática abre um profundo debate sobre suas implicações éticas,
filosóficas e legais.
RISCO DE CRIAR FALSAS MEMÓRIAS
O que realmente significa "ser"? Ao
recriar a voz ou a imagem de alguém que já faleceu, nos perguntamos se estamos
prolongando sua existência de alguma forma ou simplesmente criando uma sombra
sem substância.
A essência de um ser humano é, sem dúvida, mais do que um
conjunto de respostas programadas ou uma imagem projetada.
A singularidade da
experiência vivida, das emoções, dos pensamentos, tudo isso parece inatingível
para uma mera simulação digital.
Então, qual é o papel da memória nesse processo?
A
ressurreição digital pode ser vista como uma tentativa de preservar a memória,
de manter viva a presença daqueles que perdemos.
Mas é ético apegar-se a
uma representação artificial em vez de permitir que a memória evolua e se
transforme ao longo do tempo?
A memória humana não é estática: ela é seletiva,
muda e se adapta. Ao recriar digitalmente uma pessoa, corremos o risco de
alterar nossas próprias lembranças autênticas dela?
IDENTIDADE VERDADEIRA
Além disso, surge a questão da identidade. A
identidade de uma pessoa é uma rede complexa de experiências e
relacionamentos.
Quando tentamos recriar alguém,
podemos realmente capturar sua identidade ou estamos simplesmente criando uma
versão idealizada, que se ajusta às nossas próprias expectativas e desejos?
Esses avanços tecnológicos também nos levam a
pensar sobre o luto.
A morte é uma parte natural da vida, e o luto um processo
necessário para lidar com essa perda. Ao tentar manter uma conexão com o
falecido por meio da ressurreição digital, estamos interferindo nesse processo
vital e isso poderia nos impedir de seguir em frente e encontrar paz na
aceitação da perda?
Por fim, a ressurreição digital levanta
questões sobre consentimento e propriedade.
Quem tem o direito de decidir se
uma pessoa deve ser recriada digitalmente?
E como lidar com o consentimento de
alguém que não pode mais expressar sua vontade?
A perspectiva de fazer negócios com algo tão
profundamente humano e doloroso como a morte e a perda de um ente querido
levanta uma série de questões nos campos da filosofia, da ética e da
moralidade.
Do ponto de vista ético, essa prática parece
transgredir os princípios fundamentais de respeito e dignidade que devem
orientar nossas interações humanas.
O luto é um processo íntimo e sagrado, um
caminho para a aceitação e a paz interior após uma perda significativa.
A
intrusão comercial nesse processo pode ser vista como uma forma de exploração
emocional, tirando proveito daqueles que estão passando por um momento
particularmente vulnerável.
E QUANTO AO PROCESSO NATURAL DE LUTO?
Além disso, esse tipo de negócio pode distorcer o processo natural de
luto. O luto e a perda são experiências essenciais da condição
humana, e lidar com elas faz parte do nosso crescimento pessoal.
Se a
comercialização da ressurreição digital impedir que as pessoas passem por esses
estágios de forma saudável, oferecendo uma ilusão de presença em vez de
ajudá-las a aceitar a realidade da ausência, isso pode não ser benéfico para
elas.
Por outro lado, de uma perspectiva moral, vale a
pena questionar a intenção e o objetivo por trás desses negócios.
Em princípio,
isso parece ser justificado pelo objetivo de proporcionar conforto e uma forma
de lembrar os entes queridos. No entanto, onde está o limite entre proporcionar
conforto e explorar o luto para obter lucro?
No centro da "ressurreição digital" está
um paradoxo profundo e perturbador: a tecnologia, em sua tentativa de nos
aproximar daqueles que perdemos, nos confronta com a realidade inescapável de
sua ausência.
Esse paradoxo nos leva a questionar não apenas a natureza da
existência, mas também a essência do que significa ser humano.
Essas tecnologias, na tentativa de compensar a
falta ou preencher o vazio deixado por um ente querido, não apenas destacam
nosso desejo de nos apegarmos ao que perdemos, mas também nossa dificuldade de
enfrentar e processar o luto diante da realidade inevitável da morte.
O paradoxo se amplia ainda mais quando consideramos
que, em nosso esforço para preservar a memória e a essência dos entes queridos,
recorremos a simulações que, por sua natureza artificial, nunca podem capturar totalmente a complexidade e a
profundidade da experiência humana real.
Assim, nos deparamos com o
dilema de aceitar uma representação imperfeita e digitalizada que, embora
reconfortante em alguns aspectos, pode não fazer jus à verdadeira essência do
ente querido.
Fonte: THE CONVERSATION